Tuesday, July 30, 2013

Os rostos da República: Fernando Pessoa (14)


O conselho de Henry More apontava para uma mulher desvirginadora no seu caminho, bastando que ele não tivesse medo e há descrições bastante pormenorizadas de mulheres que deviam resolver o “problema” de Pessoa, ao ponto de se apontarem três filhos de três mães diferentes.

Pessoa acreditava nesta previsões do seu alter ego Henry More? Ou eram apenas as suas aventuras astrais que substituíam o amor terrestre para amortecerem uma relação carnal?

Seja o que for, Pessoa continua a escrever até 1930, por entre um ou outro conselho para Pessoa “acasalar”. Estes despertares coincidiram com um acordar espiritual que fazem crescer “aversão às mulheres” ao ponto de se consideram artisticamente incompleto por não ser completo sexualmente.

Afinal, Pessoa vivia assustado pela solidão para não ser o tal Deus suspenso do vazio e começa a interessar-se pela grandes religiões como forma d encontrar a ligação da sua vida aos outros seres humanos.

Daí a té se deixar seduzir pela Cabala, Rosa Cruz ou a Maçonaria foi um pequenino passo, numa fase de grande incerteza e vulnerabilidade intelectual, de alguém pedido que se agarra ao que houve para agarrar.

Passara a grande explosão de Alberto Caeiro e o poeta vivia sozinho, em quartos alugados, confrontando-se consigo mesmo.
Devorando jornais, Pessoa assistia ao descalabro do mundo, com a I Guerra Mundial, em que defendeu a posição alemã, antes de Portugal ter entrado no conflito.

Pessoa era uma personalidade profundamente abalada. À guerra junta-se a trombose que atinge a mãe e ele sentia-se rodeado pela ausência, morte e precariedade. Só o mundo espiritual e religioso lhe davam algum conforto através do contacto com o “mestre” Henry More.

É nesta fase que Pessoas se aborrece com a mediunidade como um menino larga os seus brinquedos, mas é provável que tenha acreditado tanto nela como nos seus heterónimos ou na astrologia.

Pessoa assume-se como a criança que brinca com amigos imaginários – os seus heterónimos – porque fingir para uma criança não é muito diferente de acreditar. Não fosse o poeta um fingidor e não o fosse mais ainda quando perde o dom de acreditar naquilo que ele próprio gerou.

Encomendou horóscopos astrólogos ingleses ou era cliente que queria ser fornecedor? Elaborava horóscopos para desconhecidos ou procurava fontes de receitas alternativas? Há mistérios pessoanos que permanecem indecifráveis.

Nestas distracções da mediundade que “provoca um desequilíbrio mental, nálogo ao produzido pelo alcoolismo”, Pessoa comete um dos seus grandes erros: não se aperceber que o destino ia decapitar o “esfinge gordo”, o seu maior amigo, Mário de Sá-Carneiro.

Explica também que chegados aos 30 anos, Fernando Pessoa não tivesse publicado ainda nenhum livro, ao contrário de tantos amigos menos talentosos? Era um projecto que adiava desde 1913 e anunciava aos amigos mas “nada saía” mesmo que o jornal A Capital considerasse a Ode Marítima como a “trapalhada mais extraordinária” mas “se torna forçoso reconhecer que há nela qualquer coisa de superior ao resto e que o seu auto tem talento apesar da sua maluqueira”?

Pessoa nunca se empenhou seriamente em que lhe publicassem os livros por culpa sua: a sua exigência de perfeição absoluta tornava difícil esse acto. Ele não queria ser mais um daqueles que frequentam cafés, publicam uns versos e se tornam mais ou menos conhecidos e morrem depois.

Publicar-se era para Fernando Pessoa uma “ignóbil necessidade”. Daí que apenas o tenha feito em 1918, com Antinous e 35 sonnets. A edição comprovou o seu receio: ninguém leu. Era na Inglaterra que ele esperava ter êxito e abordara já várias editoras sem sucesso ou sequer uma resposta.

Na Inglaterra, um jornal avalia Antinous e 35 sonnets e coloca em causa a qualidade do inglês do poeta e o escasso interesse “pelo valor do que os poemas têm para dizer”. Outro jornal acusava-o de “excessivo artifício shakespeariano”.

O mesmo destino têm os mil exemplares de “English poems”, inspirados em modelos gregos. Sobraram-lhe 900 exemplares. A sua aposta – ou tentativa de emigrar – londrina falhava completamente. Nesta altura da vida, Pessoa não sabia o que fazer: ficar ou sair de Lisboa para Londres, deixar de escrever e criar uma empresa import-export. As ideias fervilhavam à mesma velocidade que fracassavam no terreno. É no meio desta convulsão pessoal, literária e económica que Fernando Pessoa desencadeia uma polémica de grandes proporções.

Em 1922, publica uma edição aumentada de Canções de António Botto, um livro de versos que celebrizava a beleza masculina. Para promover o livro publica um artigo “António Botto e o ideal de estética em Portugal”. O monárquico Álvaro Maia responde-lhe com “Literatura de Sodoma: o sr. Fernando Pessoa e o ideal estético em Portugal”. Raul Leal contrapõe com “Sodoma divinizada” e surge uma Liga de Acção de Estudantes de Lisboa contra a “literatura de Sodoma”. 

O livro de Botto e o artigo de Leal são apreendidos pelo governdor civil de Lisboa enquanto é distribuído um manifesto contra “a inversão da inteligência, da moral e da sensibilidade”.
Pessoa responde, numa folha assinada por Álvaro de Campos: “Ó meninos, estudem, divirtam-se e calem-se”. Enceta depois um combate escrito pela liberdade de expressão que contrasta com o seu sidonismo anterior. 

Pessoa, após o assassínio de Sidónio Pais, glorificou-o com o poema “À memoria do Presidente-Rei Sidónio Pais”, em 1920, prenúncio do regresso do Desejado D. Sebastião. É a primeira manifestação de sebastianismo. Baseado nas profecias do sapateiro de Trancoso (séc. XVI), Pessoa quer afirmar-se como Salvador da literatura de Portugal, o super-Camões, ao mesmo tempo que desejava um super-homem politico, um grande estadista, que pudesse salvar o país do caos em que este se afundara.

Apesar do gosto pelo escândalo, Pessoa já não era visto como um jovem irrequieto, desejoso de dar nas vistas. Tornara-se um homem respeitado, recatado e de hábitos certos,  admitindo, em 1920, a possibilidadde de se casar com Ofélia Queirós, a quem declara um “amor extremo”.

No entanto, nas cartas trocadas entre ambos, Fernando Pessoa falava-lhe de assuntos corriqueiros. Costumavam passear a pé mas Fernando nunca quis ir a casa dela e conhecer os seus familiares. A relação ficou numa caixa, num compartimento, isolada do resto da vida de Pessoa, apesar de ter tido grande importância para ele. Guardou as muitas cartas e postais de Ofélia. 

Ele queria amá-la mas faltava-lhe o essencial: a entrega. Quando o namoro acabou, ele sentiu-se “aliviado e sem vocação para outras afeições”.





Os rostos da República: Fernando Pessoa (13)


Pode ter perpassado a ideia, nas últimas crónicas, que Fernando Pessoa passou pela miséria, mas a verdade é que nunca esteve à beira dela, apesar de todos os percalços.

No entanto, é verdade que Fernando Pessoa foi afligido, durante toda a sua vida adulta, a começar na adolescência, por crises de depressão, devidas ao seu exacerbado sentimento de solidão.
Já em criança sentia necessidade de se isolar dos outros e mais tarde reconhece que apenas Mário de Sá-Carneiro era “o maior e mais íntimo amigo”.

Em que consistia essa intimidade, na troca de poemas para serem comentados reciprocamente.
Estranhamente nunca se tratam por tu, mas falam das suas angústias, receios e depressões, mas quase sempre num tom literário, elevado, com recurso a metáforas, imagens requintadas e recurso a passagens das suas obras.

Sá-Carneiro queixava-se mais vezes da falta de dinheiro e pedia a Pessoa para ir pedir ou cobrar dívidas a amigos em Lisboa.
Quando Sá- Carneiro caminhava para o suicídio, Fernando pessoa escreve-lhe que “há barcos para muitos portos, mas nenhum para a vida não doer, nem há desembarque onde se esqueça. Tudo isto aconteceu há muito tempo mas a minha mágoa é muito antiga”.

Sá-Carneiro era o mais inseguro dos dois, com receio de ofender ou incomodar o outro mas sempre aflito quando as cartas de Pessoa tardavam a chegar. Pessoa tinha uma irresistível capacidade para se distanciar das suas emoções, algo impessoais, como se fosse um observador de si próprio… até ao dia em que o seu amigo Mário se entregou numa aventura sem retorno com uma “personagem feminina”.

Pessoa reagiu com ciúmes face à prostituta Helena ou estava a reagir ao afastamento definitivo – o suicídio de Mário, a 26 de Abril de 1916?

Pessoa entendia o sexo como “elementos de obscenidade” que eram um “estorvo a certos processos mentais superiores” mas estava ainda vivo, como demonstra numa carta publicada em 1915, embora com uma orientação pouco clara.

Em Agosto desse ano escreve Antinous, em que o imperador canta a sua dor e o seu amor perante o cadáver do jovem amante, que morrera afogado no Nilo. É o mais belo poema de amor que Fernando escreveu, com muito desejo sublimado, com a expressão repetida “Ai de mim!” perante uma rapariga a quem fez olhinhos mas não teve atrevimento para mais.

O jovem poeta estava confuso e baralhado. Queria relacionar-se com mulheres (entre 1914 e 1920) ou colocar-se em causa sexualmente devido à sua timidez com as mulheres? Em parte, era assim, como demonstra uma carta que escreve a João Gaspar Simões. Nessa carte, Pessoa reconhece ter duas sexualidades à parida, representadas pelos poemas Epithalamium e Antinous.

Em 1916 ainda confessa ser virgem, enquanto Mário de Sá-Carneiro se desenvencilhava desse problema com uma prostituta, em Paris. Na gravura, o seu poema Aquele outro.

Um dia, um dos seus heterónimos, Henry More, avisa-o a 28 de Junho de 1916: “não deves continuar a manter a castidade. És tão misógino que te encontrarás moralmente impotente e, dessa forma, não produzirás nenhuma obra completa na literatura”.

Esta inquietação sexual coincide com o despertar espiritual de Fernando Pessoa, entre 1915 e 1918: “um génio inteiramente só, por mais genial que seja, é tão carente de sentido como um Deus suspenso no vazio”.

Fernando Pessoa necessitava de ligar a sua vida com outros seres humanos, no plano afectivo, ou seres superiores, no plano espiritual. A verdadeira busca começa agora para ao autor de “A Mensagem”.

Os rostos da República: Fernando Pessoa (12)


A ‘heterocracia’ de Fernando Pessoa chegou ao ponto de criar um Thomas Crosse, suposto tradutor e crítico inglês, criado depois para distinguir Alberto Caeiro, Ricardo Reis e Álvaro Campos, chegando ao ponto de planear, em 1916, uma Antologia dos poetas sensacionistas portugueses.

O Thomas Crosse não “cumpriu” essa tarefa e apenas escreveu parte do prefácio dessa obra.
Pessoa ou Thomas Crosse chegou a traduzir para inglês alguns versos de um poema de Alberto Caeiro, dois poemas inteiros de Álvaro Campos e o início da Ode Marítima.

O ano de 1914 marca também uma viragem na poesia do ortónimo Fernando Pessoa (outro que “vivia” com a tia Anica) ou seja o verdadeiro Pessoa que, ao conhecer Alberto Caeiro, “teve naquele momento a sua libertação" ao dar a conhecer qualquer coisa diferente nos seus poemas que têm datas posteriores a 8 de Março de 1914.

Que confusão, dirá o leitor. A esta observação camiliana, devemos lembrar que pessoa encarnava outras pessoas, com nomes diferentes, mas que eram a mesma pessoa que escreveu 
Ó sino da minha aldeia,
Já lenta na tarde calma,
Cada tua badalada
 Soa dentro da minha alma

Ou então:
A cada tua pancada,
Vibrante no céu aberto,
Sinto mais longe o passado,
Sinto a saudade mais perto”.

É uma verdadeira ficção em torno de si próprio que Pessoa urde ao longo deste período de desdobramento dos seus “eu”, numa caminhada de despersonalização – e de desresponsabilização? – porque todos eles estavam artisticamente vivos, com vida própria, verdadeira e responsabilidade nenhuma.

Mas é neste ano de 1914 que desponta uma Primavera triunfal, a explosão de Pessoa como um grande escritor que resulta de uma mistura da escola inglesa, os estudos de Latim e das literaturas clássicas, os românticos e simbolistas franceses em que ele mergulhara oito anos antes.

O rastilho foi um poeta americano – Walt Whitman — , a chave que abriu Pessoa para ‘O Canto de Mim mesmo’ que é um hino ao cosmo inteiro e galvaniza Pessoa a libertar-se dos heterónimos de forma progressiva, sem que deixe de os criar, como António Mora (continuador de Caeiro) ou Rafael Baldai (astrónomo de barbas longas que filosofava no seu Tratado de Negação).

Também temos os irmãos de Thomas Crosse (I. I. Crosse ou A. A. Crosse) que assinava ensaios a favor de Alberto Caeiro (I. I.) ou concorria a prémios literários (A. A.). Estes heterónimos comentavam entre si as obras dos anteriores Ricardo Reis e Álvaro de Campos, críticos um do outro e envolvendo-se numa discussão acalorada que respeitava a grandeza incondicional do mestre Caeiro… Devem ter sido divinais estes anos para Fernando Pessoa no diálogo com os seus outros “eu” (alter ego).

O único conhecedor destas multifacetadas personagens era Mário de Sá-Carneiro e daí que se entenda que tenha definido Pessoa como “Homem-Nação – o Prometeu que dentro do seu mundo interior de génio arrastaria toda uma nacionalidade: uma raça e uma civilização”.

Pessoa gerou a sua própria civilização sem sair de casa e nutria a esperança de impor esta civilização - dos heterónimos – no mundo real.
Álvaro de Campos assinava cartas para os jornais e dava entrevistas. Há dezenas de páginas elogiosas que Pessoa queria publicar em jornais portugueses e estrangeiros para Lançar Caeiro, enquanto Frederico Reis escreveu um longo folheto sobre a escola de lisboa que era constituída por Caeiro, Reis e campos e se opunha a Teixeira de Pascoais e aos saudosistas do Porto. Sozinho, desdobrando-se em muitos autores, Pessoa estava pronto a transformar a literatura nacional.

Era uma ambição desmesurada. Sejamos simpáticos: era uma forte desejo de afirmação pessoal ou o maior monumento conhecido ao narcisismo na Europa, pelo menos.

Uns dividem para reinar, Fernando Pessoa “dividia-se para reinar” e afirma-o ousadamente em Ultimatum pela pena de Álvaro de Campos, onde condena a época de então por “incapacidade de criar grandes valores” e luta pela “abolição do dogma da personalidade” quando afirma que nenhum artista deve ter “só uma personalidade” uma vez que o maior artista é aquele que “menos se define, escreve em mais géneros com mais contradições e dissemelhanças”.

Em 5 de Junho, o poeta fingidor escreve à mãe: “os meus amigos dizem-me que eu serei um dos maiores poetas contemporâneos”. É uma altura de inquietude que procura o regaço da mãe e o reconhecimento público que receava e o levava a refugiar-se nos “Hetero”.

Os rostos da República: Fernando Pessoa (11)


O maior artista, escreve Campos (perdão, Pessoa) terá múltiplas personalidades (quinze ou vinte), exactamente como Fernando Pessoa (um poeta fingidor) que tinha dias “monotamente agradáveis” em que se consolava “com o pensamento astrológico de que não podia acontecer nada realmente grave”.

Mesmo que acabasse o dia “sem jantar porque não tinha dinheiro” nada se comparava à “mistura de megalomania e ideias religiosas (que de modo algum atacaram a lucidez)”…porque a astrologia era uma das razões mais úteis para ocupar o seu tempo de leituras. Fernando Pessoa chegou mesmo a fazer o horóscopo de Álvaro de Campos e de Ricardo Reis.

Nesse mesmo ano, Fernando Pessoa escreve uma frase que deixa o mundo português escandalizado: “o desdobramento do eu é um fenómeno em grande número de casos de masturbação” só possível explicar por um adulto que “nunca fui senão uma criança que brincava” – conforme palavras postas na boca de Alberto Caeiro, a 7 de Novembro de 1915. 

Melhor dito, Fernando Pessoa foi um bebé crescido num corpo adulto que jogava xadrez onde as peças eram personagens criadas por si.
Em JUnho de 1914, no momento do parto de Álvaro de Campos e de Ricardo Reis, Fernando Pessoa escreve à mãe, em Pretória, onde afirma: “os meus amigos dizem-me que eu serei um dos maiores poetas contemporâneos”.

Apesar disso, Pessoa sentia-se inquieto, apesar de consciente do seu génio invulgar que ansiava pelo reconhecimento público que receava.
Sentia que o rumo da sua vida estava a mudar, o que era terrivel para quem entendia que “mudar é uma morte parcial; morre qualquer coisa de nós” bem como “mudar é mau, é sempre mudar para pior”.

Pessoa falava muito das saudades de infância e estas aumentaram com a idade, em reacção à morte que lentamente se aproximava dele, dele como de toda a gente.

Pessoa tinha um medo de crescer. Podia viver para a celeridade póstuma mas não se sentia preparado para a vida que o comum dos homens leva “casado, fútil, quotidiano e tributável”.

Não era um homem de família, que justificava com as suas ambições literárias e por ter um lugar seguro na família que o trouxera ao mundo. Contudo, essa família desmoronara-se com o correr dos anos, passando então a viver sozinho, numa série de quartos alugados todos eles entre os bairros da Estfânia e dos Anjos.

Os apuros económicos – sem apoio familiar — não eram novidade mas começaram a ser maiores, manifestando-se especialmente na década de 1910. Para poder dedicar mais tempo à sua escrita, Pessoa recusava trabalhos com horário fixo numa altura em que todos os amigos e familiares lhe tinham emprestado dinheiro, às vezes montantes elevados.

Acrescem a estas dificuldades, a aflição durante toda a sua vida adulta por crises de depressão, derivadas do seu exacerbado sentimento de solidão, neceesidade sentida desde a infância. “Um amigo íntimo é um dos meus ideais, um dos meus sonhos, mas um amigo íntimo é algo que nunca terei” – confessava Fernando Pessoa, em 1917, profetizando está dolorosa estranha forma de vida.

Numa carta escrita à mãe, em 1914, Fernando Pessoa referia-se a Mário de Sá-Carneiro como o “meu maior e mais íntimo amigo” traduzida em mais de 200 cartas e postais desta e quase nenhuma de Fernando Pessoa. Era uma amizade literária  de troca de poemas e de textos ou a pedir a Pessoa que visitassem amigos lisboetas que lhe deviam dinheiro.

Raramente Fernando Pessoa era banal nas poucas cartas que restam para Sá-Carneiro que se revelava o mais inseguro dos dois e neceesitava da aprovação de Pessoa para se libertar das suas depressões em que “me dói a vida aos poucos, a goles, por interstícios. Tudo isto está impresso em tipo muito pequeno num livro com a brochura a descozer-se”. 

Antecipava-se um momento dramático para Fernando Pessoa: a morte do seu amigo.









Os rostos da República: Fernando Pessoa (10)



Quem era Alberto Caeiro? O  autor de “O Guardador de Rebanhos”, heterónimo de Fernando Pessoa, “nasceu” a 16 de Abril de 1889, numa homenagem a melhor amigo de Pessoa: Mário de Sá-Carneiro.
O nome Caeiro é Carneiro sem a carne, dado a um "pastor cujas ovelhas foram espiritualizadas em pensamentos” até porque “A minha alma é como um pastor” e “o Rebanho é os meus pensamentos”. O seu amigo do zodíaco era Sá-Carneiro.

Sá-Carneiro suicidou-se antes de completar 26 anos e Alberto Caeiro também morreu jovem, com 26 anos, de tuberculose (a doença que inquietava Pessoa desde a infância, por razões familiares).
Pessoa escreveu sobre ambos “Morre jovem o que os Deuses amam”. Pessoa concebeu Alberto Caeiro como o poeta da Natureza, além de ser um vanguardista multifacetado, cuja “morte” prematura leva Pessoa a transferir as ambições futuristas para Álvaro de Campos., como um rebento de Alberto Caeiro, a partir de 1914.

A relação entre os dois heterónimos reflecte-se nos nomes (Alberto e Álvaro), com semelhança fonética, alem de Álvaro vir dos campos onde Alberto guardava os seus rebanhos imaginários.

Álvaro de Campos nasce em Tavira, em 1890, estuda engenharia naval em Glasgow, viaja pelo Oriente, viveu alguns anos em Inglaterra, onde cortejava rapazes e raparigas por igual, até se fixar em Lisboa.

Dos seu s primeiros poemas, o destaque vi para a Ode Triunfal que celebra as máquinas e a idade moderna com fôlego exuberante.
Com o passar os anos, os poemas de Álvaro tornam-s mais curtos e melancólicos “Na passagem das horas”...

Sentir tudo de todas as maneiras,
Viver tudo de todos os lados,
Ser a mesma cousa de todos os modos possíveis, ao mesmo tempo,
Realizar em si toda a humanidade de todos os momentos
Num só momento difuso, profuso, completo e longínquo".

O que hoje podemos escrever sobre Álvaro e Alberto foi impossível até 1924. Se é verdade que Álvaro teve projecto mediática imediata, só neste ano se conheceram o Alberto e o Ricardo Reis.

Campos assinava cartas para jornais, dava entrevistas e entrava em polémicas, opondo-se muitas vezes às teses do seu criador (Pessoa). Álvaro Campos era tão “real” que intervinha na vida diária do seu criador, substituindo-o em alguns encontros com Ofélia Queiros que não gostava nada do engenheiro nem em pessoa (ou melhor, “em Pessoa” nem nas cartas que dele recebia (cf. ZANITH, Richard, op.cit. pp. 99-108).

Os directores da Presença (Gaspar Simões e José Régio) ficaram desgostosos quando foram ao café Montanha, em Junho de 1930, na expectativa de conhecer o seu mais ilustre colaborador e quem apareceu não foi Pessoa mas o engenheiro Álvaro de Campos. Mera brincadeira ou mecanismo de defesa de Pessoa inseguro perante pessoas desconhecidas? Álvaro de Campos existia para alem das páginas por si escritas.

Vamos ao terceiro heterônimo: Ricardo Reis, que surge uns dia apos Campos, na personagem de medico que Pessoa define como “Horácio grego que escreve em português”.

Reis era especialista em odes métricas sem rima sobre a futilidade da vida e a necessidade de aceitar o destino, muito contrários, à partida, ao espírito inovador do Álvaro e do Alberto. 

No entanto, este “portuense nascido” em 1887, denotava atenção ao renascimento italiano que revalorizava o legado cultural da antiguidade. Como o apelido sugere é monárquico e tem de exilar-se no Brasil, deixando-nos milhares de papeis com poemas e textos soltos.

O intersecccionismo é um movimento literário de vanguarda criado por Fernando Pessoa e que se caracteriza pela inclusão alternada no poema de vários níveis simultâneos de realidade: a interior e a exterior, a objectiva e a subjectiva, o sonho e a realidade, o presente e o passado, o eu e o outro (cf. GUIMARÃES, Fernando - O Modernismo Português e a sua Poética , Lello, Porto, 1999, pp.71-72).

O poema "Chuva Oblíqua", de Fernando Pessoa (in "Orpheu" n.º 2, 1915), é o exemplo mais significativo deste novo processo, porque nele se cruzam a paisagem presente e ausente, o actual e o pretérito, o real e o onírico:

"Ilumina-se a Igreja por dentro da chuva deste dia
E cada vela que se acende é a chuva a bater na vidraça..."

No entanto, os três heterônimos são a expressão do “sensacionismo”, um movimento nascido do interseccionismo, que Pessoa define: “Caeiro tem uma disciplina: as coisas devem ser sentidas tais como são. Para Ricardo Reis, as coisas devem  ser sentidas, não só como são, mas de modo a integrarem-se num certo ideal de medida e regra clássicas. Em Álvaro de Campos, as coisas devem ser simplesmente sentidas”. 
Este último é quem melhor exprime o sensacionismo mas cabe a Caeiro chefiar o movimento... em 1916.

O sensacionismo deriva de três movimentos: do simbolismo francês, do panteísmo transcendental português e "da baralhada de coisas sem sentido e contraditórias de que o futurismo, o cubismo e outros quejandos são expressões ocasionais, embora, para sermos exactos, descendamos mais do seu espírito do que da sua letra" (cf. PESSOA, Fernando - Páginas Íntimas e de Auto-Interpretação, Lisboa, Ática, pp. 134-138). 

Para este movimento, a única realidade em arte é a "consciência da sensação" e baseia-se em três princípios artísticos: 1) o da sensação, 2) o da sugestão, 3) o da construção" (id. ibid., pp.134-138).