Tuesday, May 14, 2013

Os rostos da República: Fernando Pessoa (09)

Quem era Alberto Caeiro? O  autor de “O Guardador de Rebanhos”, heterônimo de Fernando Pessoa, “nasceu” a 16 de Abril de 1889, numa homenagem a melhor amigo de Pessoa: Mário de Sá-Carneiro.
 
O nome Caeiro é Carneiro sem a carne, dado a um "pastor cujas ovelhas foram espiritualizadas em pensamentos” até porque “A minha alma é como um pastor” e “o Rebanho é os meus pensamentos”. O seu amigo do zodíaco ea Carneiro.

Sá-Carneiro suicidou-se antes de completar 26 anos e Alberto Caeiro também morreu jovem, com 26 anos, de tuberculose (a doença que inquietava Pessoa desde a infância, por razões familiares).

Pessoa escreveu sobre ambos “Morre jovem o que os Deuses amam”. Pessoa concebeu Alberto Caeiro como o poeta da Natureza, além de ser um vanguardista multifacetado, cuja “morte” prematura leva Pessoa a transferir as ambições futuristas para Álvaro de Campos, como um rebento de Alberto Caeiro, a partir de 1914. 
 
A relação entre os dois heterônimos reflecte-se nos nomes (Alberto e Álvaro), com semelhança fonética, alem de Álvaro vir dos campos onde Alberto guardava os seus rebanhos imaginários.

Álvaro de Campos nasce em Tavira, em 1890, estuda engenharia naval em Glasgow, viaja pelo Oriente, viveu alguns anos em Inglaterra, onde cortejava rapazes e raparigas por igual, até se fixar em Lisboa.

Dos seu s primeiros poemas, o destaque vi para a Ode Triunfal que celebra as máquinas e a idade moderna com fôlego exuberante.

Com o passar os anos, os poemas de Álvaro tornam-se mais curtos e melancólicos “Na passagem das horas”...

Sentir tudo de todas as maneiras,
Viver tudo de todos os lados,
Ser a mesma cousa de todos os modos possíveis, ao mesmo tempo,
Realizar em si toda a humanidade de todos os momentos
Num só momento difuso, profuso, completo e longínquo.

O que hoje podemos escrever sobre Álvaro e Alberto foi impossível até 1924. Se é verdade que Álvaro teve projecto mediática imediata, só neste ano se conheceram o Alberto e o Ricardo Reis.

Campos assinava cartas para jornais, dava entrevistas e entrava em polémicas, opondo-se muitas vezes às teses do seu criador (Pessoa). Álvaro Campos era tão “real” que intervinha na vida diária do seu criador, substituindo-o em alguns encontros com Ofélia Queiros que não gostava nada do engenheiro nem em pessoa (ou melhor, “em Pessoa” nem nas cartas que dele recebia (cf. ZANITH, Richard, op.cit. pp. 99-108).

Os directores da Presença (Gaspar Simões e José Régio) ficaram desgostosos quando foram ao café Montanha, em Junho de 1930, na expectativa de conhecer o seu mais ilustre colaborador e quem apareceu não foi Pessoa mas o engenheiro Álvaro de Campos. Mera brincadeira ou mecanismo de defesa de Pessoa inseguro perante pessoas desconhecidas? 

Álvaro de Campos existia para alem das páginas por si escritas.

Vamos ao terceiro heterônimo: Ricardo Reis, que surge uns dias após Campos, na personagem de medico que Pessoa define como “Horácio grego que escreve em português”.

Reis era especialista em odes métricas sem rima sobre a futilidade da vida e a necessidade de aceitar o destino, muito contrários, à partida, ao espírito inovador do Álvaro e do Alberto. 

No entanto, este “portuense nascido” em 1887, denotava atenção ao renascimento italiano que revalorizava o legado cultural da antiguidade. Como o apelido sugere é monárquico e tem de exilar-se no Brasil, deixando-nos milhares de papeis com poemas e textos soltos.

O intersecccionismo é um movimento literário de vanguarda criado por Fernando Pessoa e que se caracteriza pela "inclusão alternada no poema de vários níveis simultâneos de realidade: a interior e a exterior, a objectiva e a subjectiva, o sonho e a realidade, o presente e o passado, o eu e o outro" (cf. GUIMARÃES, Fernando - O Modernismo Português e a sua Poética , Lello, Porto, 1999, pp.71-72).

O poema "Chuva Oblíqua", de Fernando Pessoa (in "Orpheu" n.º 2, 1915), é o exemplo mais significativo deste novo processo, porque nele se cruzam a paisagem presente e ausente, o actual e o pretérito, o real e o onírico: 

Ilumina-se a Igreja por dentro da chuva deste dia
E cada vela que se acende é a chuva a bater na vidraça...

No entanto, os três heterônimos são a expressão do “sensacionismo”, um movimento nascido do interseccionismo, que Pessoa define: “Caeiro tem uma disciplina: as coisas devem ser sentidas tais como são. Para Ricardo Reis, as coisas devem  ser sentidas, não só como são, mas de modo a integrarem-se num certo ideal de medida e regra clássicas
Em Álvaro de Campos, as coisas devem ser simplesmente sentidas”. Este último é quem melhor exprime o sensacionismo mas cabe a Caeiro chefiar o movimento...em 1916.

O sensacionismo deriva de três movimentos: do simbolismo francês, do panteísmo transcendental português e "da baralhada de coisas sem sentido e contraditórias de que o futurismo, o cubismo e outros quejandos são expressões ocasionais, embora, para sermos exactos, descendamos mais do seu espírito do que da sua letra" (cf. PESSOA, Fernando - Páginas Íntimas e de Auto-Interpretação, Lisboa, Ática, pp. 134-138). 

Para este movimento, a única realidade em "arte é a consciência da sensação" e baseia-se em três princípios artísticos: 1) o da sensação, 2) o da sugestão, 3) o da construção" (id. ibid., pp.134-138).

Nota: quadro "Guardador de rebanhos", de Ricardo Alves


Os rostos da República: Fernando Pessoa (08)

Com as ideias de Álvaro de Campos surgem as primeiras tensões dentro do grupo que se agravaram por dificuldades económicas que extinguiram o Orpheu. 

O suicídio de Sá-Carneiro, no ano seguinte, contribui para unir o grupo mas o génio de Fernando Pessoa já estava imparável, na renovação da literatura portuguesa, através de várias revistas como Centauro, Exílio, Portugal Futurista. Esta acabou por ser apreendida pela polícia antes de ser distribuída por razões políticas ou morais.
 
Apesar das contrariedades, Fernando Pessoa procurava levar o projecto de Orpheu para a frente e anuncia a saída do número 3, em 1916, com colaborações que incluíam “dois poemas ingleses meus, muito indecentes”, versos de Pessanha e poemas inéditos de Sá-Carneiro, A cena do ódio de Almada Negreiros e quatro hors-textesdo mais célebre pintor avançado português, Amadeo de Sousa-Cardozo” (quadro acima).

Todavia, a revista apenas consegue estar pronta em Julho do ano seguinte mas “entrará então, misteriosamente, numa dormência prolongada” (cf. ZENITH, Richard, op. cit. pp. 88 a 98).

No entanto, é difícil sobrestimar o papel desempenhado pela revista Orpheu na introdução do modernismo em Portugal, quanto mais não seja por ter conseguido romper com a ideia fixa de que convinha seguir modelos e padrões consagrados lá fora. 

Orpheu era um grito a clamar por renovação que – diga-se – seguiu um caminho praticamente paralelo ao modernismo inglês, tendo ocupado um lugar de relevo no panorama português.

Enquanto os companheiros de Orpheu procuravam revolucionar as letras portuguesas, uma nova ideia fermentava no espírito de Fernando Pessoa. Em quatro meses, no ano de 1914, surgiam três heterónimos propriamente ditos de Pessoa e, dois anos depois, cada um deles tinha uma obra merecedora de figurar em qualquer Olimpo da poesia universal.

A revolução pessoana era, afinal, mais profunda, genuína e surpreendente do que a outra revolução, visível, que levara à criação de Orpheu.

Fernando pessoa nunca questionou a grandeza de Alberto Caeiro, Álvaro de Campos ou de Ricardo Reis, mas duvidava, da sinceridade e do valor de movimentos como o paulismo, o interseccionismo e o futurismo.
A sua revista Europa acabou por sair rebaptizada de Orpheu e mudeou decisivamente o rumo da literatura portuguesa.

Para Pessoa, introduzir o modernismo não era um feito extraordinário. Agora, "ser-se um poeta absolutamente genial era, e será sempre, um feito impossível de realizar por vontade e esforço humanos. Ser vários poetas absolutamente geniais, então, era de uma absoluto ineditismo” (ZANITH, Richard, in op. cit. Pp. 99- 107).

Agora se sabe, através da análise dos manuscritos pessoanos, que a história do dia triunfal de 8 de Março de 1914, quando Alberto Caeiro “apareceu” em Fernando Pessoa que ele escreveu, como se um jacto fosse, numa “espécie de êxtase”, mais de 30 poemas de “O Guardador de Rebanhos”.

É a obra poética mais sublime de Pessoa que escreveu metade dos seus 49 poemas em duas semanas daquele prodigioso mês de Março. 

Alberto Caeiro, o primeiro alicerce do célebre tripé de heterónimos a surgir, era um poeta do campo, sem estudos, mas reconhecido pelos outros como “mestre que pregava a percepção directa das coisas, sem filosofias”.

Para Caeiro, 
O essencial é saber ver;
Saber ver sem estar a pensar;
Saber ver quando se vê; 
E nem pensar quando se vê 
Nem ver quando se pensa.

Caeiro era o “único poeta da natureza” que dela fazia “pura filosofia” nascida num “instante de nirvana poético, uma impossibilidade consubstanciada em versos transparentes, belos e precisos como o cristal”.

O próprio Pessoa ficou “deslumbrado” quando escreve a um amigo: “se há parte da minha obra que tenha um ‘cunho de sinceridade’, essa parte é… a obra de Caeiro” que excede o que o “eu racionalmente podia gerar dentro de mim”.

Quem era Alberto Caeiro? Daremos a resposta a seguir.

Os rostos da República: Fernando Pessoa (07)


Só em 1912, Fernando Pessoa faz a sua estreia como escritor com um ensaio “A nova poesia portuguesa”, e explica que Portugal está no limiar de uma época gloriosa da sua literatura, na qual apareceria o “Grande poeta”, que "remeteria para segundo plano a figura de Camões”.

Quem era o grande poeta? Era Pessoa… 

Ele sentiu que o seu génio criador estava prestes a dar fruto. Fernando Pessoa continuava a produzir poesia em inglês, com o heterónimo Alexander Search, até 1910, enquanto em seu nome próprio escrevia em português.

Lendo os simbolistas Mallarmé, Verlaine, Rimbaud e muita poesia nacional, Fernando Pessoa faz a transição entre a Monarquia e a República em contacto com Teixeira de Pscoaes e o quase inédito Camilo Pessanha.

Fernando Pessoa está seguro de que, “andando pensa-se melhor que sentado”, quando escrevia a Mário de Sá-Carneiro que “o que é preciso é ter um pouco de Europa na Alma”.
 
De facto, entre os 24 e os 29 anos, Fernando Pessoa vive num rodopio de movimento, emoção, criatividade e contactos pessoais que se afasta do estereotipo do poeta recolhido no seu quarto, afastado dos outros seres humanos, a ler livros e a escrever coisas para a “famosa arca que só nós iríamos apreciar”.

A vida pública de Pessoa girava em torno da literatura e esta estimulava aquela, levando-o a frequentar cafés lisboetas e reunr-se com jornalistas e escritores como Augusto Gil ou Camilo Pessanha, discutindo as novidades editoriais, mostrando o que escrevia e ouvindo os poemas deles.

A chegada da República gerara grandes exectativas. Apesar do  caos reinante logo nos primeiros anos e de um “ódio especial por Afonso Costa”, Pessoa acreditava que era dentro da República que se faria o renascimento cultural de Portugal.

A lealdade de Fernando Pessoa à República estava aí para continuar, através do seu punho, há precisamente cem anos, quando Pessoa vive momentos de grande frenesim na sua produção, começando a afirmar toda a sua genialidade.

No ano de 1913, a política não podia deixar de ser um tema muito debatido nas tertúlias frequentadas por Fernando Pessoa, que se prolongavam horas e horas na elaboração de manifestos  a defender a República, contra os monárquicos, mas opondo-se aos “afonsistas”.

Nesse núcleo de poetas, citados na crónica anterior, nascia a revista Águia que acolhe “Na floresta do alheamento”, prosa poética do “Livro do Desassossego”. 

O ano 1913 é de facto o ponto de partida na revelação do génio pessoano, sem que haja grande rebuliço nas letras portuguesas de então.
Pessoa não punha em causa a ultra-racionalidade mas inclinava-se mais para o Intersecccionismo, uma espécie de cubismo aplcado à literatura.

Tal era o esforço de inovação literária que Pessoa e os seus discípulos estavam sós, sem terem quem os acolhesse no meio literário português, o que explica os fracassos editoriais.

No começo de 1913, Fernando Pessoa tenta lançar uma nova revista Lusitânia que se debruçasse sobre os problemas políticos da República e o lugar que ela ocupava (escasso) na cena internacional. Projectada por Pessoa com Sá-Carneiro a secretário, a revista contava com colaborações de José Almada Negreiros, Cobeira, João Correia de Oliveira (irmão do poeta minhoto António e muito amigo de Pessoa) e Camilo Pessanha, “um grande poeta inédito”.

Alguns meses depois, o nome da revista mudava para Europa correspondendo ao duplo desejo de Pessoa trazer a modernidade europeia para Portugal e promover a cultura portuguesa no Velho Continente. Os amigos Sá Carneiro e Santa-Rita Pintor traziam a Pessoa as tendências mo-dernas da Europa e da A-mérica do Sul, como o cubismo (Picasso) e modernismo (Max Jacob e Apolinaire).

O escândalo Orpheu

A Lusitânia nunca chegou a sair porque entretanto Montalvor sugeriu o nome de Orpheu, cujo  editor foi António Ferro, e o primeiro número surge só em Março de 1915, sendo recebida como uma “maluqueira literária” de uns “alienistas”. 

Pessoa ficou satisfeito porque “somos o assunto do dia em Lisboa. O escândalo é enorme. Somos apontados na rua e toda a gente fala no Orpheu”. 

O segundo número saiu três meses depois e a imprensa voltou a destacar este grupo de “doidos”. Apareciam vários poemas de Álvaro de Campos, o heterónimo mais exuberante de Pessoa e o primeiro a ser revelado publicamente. Com as ideias de Álvaro de Campos surgem as primeiras tensões dentro do grupo que se agravaram por dificuldades económicas que extinguiram o Orpheu. 

O suicídio de Sá-Carneiro, no ano seguinte, contribui para unir o grupo mas o génio de Fernando Pessoa já estava imparável, na renovação da literatura portuguesa, através de várias revistas como Centauro, Exílio, Portugal Futurista. 

Esta acabou por ser apreendida pela polícia antes de ser distribuída por razões políticas ou morais.


 

Os rostos da República: Fernando Pessoa (06)


Se nada de África perdurou na memória daquela irrequieta e simpática criança que era Fernando Pessoa. Há sempre uma excepção, para além do Luar. Mohandas Gandhi, futuro herói da independência da Índia.

Um juíz mandou-o tirar o turbante, em Durban, a seguir foi expulso de um comboio por querer sentar-se na primeira classe, para a qual comprara o devido bilhete, factos que o levam a encetar uma luta contra o racismo perpetrado sobre os emigrantes indianos.

Quatro mil brancos, com os seus criados negros tentaram, anos mais tarde, linchar Gandhi. Não se sabe que efeito tiveram estes gestos em Fernando pessoa mas manda a verdade escrever que, anos mais tarde, o autor de “A Mensagem” tenta um ensaio sobre a figura do resistente pacífico indiano, “a única figura verdadeiramente grande que há hoje no mundo”.

Porquê? Porque, “em certa medida, não pertence ao mundo e o nega”. Porque “ele não pode ser ridículo porque não pode ser medido pelas normas dos que o pretendem ridicularizar”.

Porque “o seu alto exemplo, inaproveitável pela nossa fraqueza, enxovalha a nossa ambiguidade” afirmando-se como “herói sem armas, dá ferrugem aos nossos numerosos gládios, espingardas e peças” e “paira acima da nossa bebedeira de conseguimentos”.

Fernando Pessoa regressa a Lisboa em Setembro de 1905, onde começa a assistir às primeiras aulas do Curso Superior de Letras (que em 1911 é integrado na Universidade de Lisboa), sendo encaminhado para uma carreira diplomática, acrescentando filosofia às cadeiras de letras e de história. É na disciplina de Filosofia que se empenha mais.

O seu melhor amigo de curso foi Armando Teixeira Rebello, que também vivera a infância na África do Sul porque a maior parte dos seu colegas eram “convencionais”.

De pressa se sentiu desiludido porque se uns eram convencionais, outros estavam “profundamente escravizados como qualquer outro escravo”. “Já não tenho esperança em qualquer amizade aqui: procurarei ir-me embora e o mais depressa possível”.

São extractos do seu diário, assinado por Charles Robert Anon, através de um carimbo. Os trabalhos escolares são redigidos em excelente português mas os poemas eram escritos em inglês nesta etapa da vida, imitando Cesário Verde w outros simbolistas.

Enquanto decorria o curso, sem entusiasmo, passava longos tempos na Biblioteca Nacional lendo Aristóteles e Kant, as religiões do mundo, psicologia e Charles Darwin, bem como autores clássicos franceses e ingleses.

Pessoa escrevia poemas e reflexões e amava Portugal cada vez mais e preocupava-se com os eu futuro político, aponto de elaborar um trabalho a justificar o regicídio português D. Carlos, perante o resto do mundo, em 1908.

O Sentimento patriótico de Pessoa foi exacerbado pela sua aversão à chamada ditadura de João Franco, apoiada por D. Carlos. O desejo de escrever em português e abandonar o pseudónimo Anon nasce com o desejo de militar contra a monarquia e é suscitado pela leitura de Folhas Caídas, de Almeida Garrett.

Com 19 anos, após vários heterónimos, Pessoa já via claramente o seu caminho: a escrita posta ao serviço da literatura, da humanidade, do país e da sua glória pessoal ou não tivesse ele escrito que “sempre foi um grande poeta pequenino, inda mamava e já fazia versos à ama, o maroto”. 

Em 1909, adulto e com dinheiro da herança nas mãos, Pessoa vai a Portalegre comprar uma tipografia para trazer para Lisboa para publicar algumas obras suas com heterónimos. O sonho foi de pouca duração e a tipografia praticamente não chegou a existir.

Restava a Pessoa ser correspondente estrangeiro de casas comerciais, cobrando um tanto por carta e trabalhar no horário que lhe convinha, Em 1911 começa a fazer traduções literárias do inglês e do espanhol mas nunca foi a solução para os seus gastos.

Literariamente a carreira avançava mas sem reconhecimento porque nada publicara em seu nome… concebia nesta altura duas das suas mais importantes obras Mensagem e Fausto. O título original da primeira era Portugal. O Fausto ocupou o escritor até à sua morte. Ficou para a posteridade, como o Livro do Desassossego, como um grandioso monumento de fragmentos.

Só em 1912, Fernando Pessoa faz a sua estreia como escritor com um ensaio “A nova poesia portuguesa”, publicado na revista Águia, dirigida por Teixeira de Pascoaes. Explica que Portugal está no limiar de uma época gloriosa da sua literatura, na qual apareceria o “Grande poeta”, que "remeteria para segundo plano a figura de Camões”.

Quem era o grande poeta? 

Era Pessoa… sem nada que lhe pudesse valer a fama porque “o prazer da fama futura é um prazer presente – a fama é que é futura. Eu, que na vida transitória não sou nada, posso gozar a visão do futuro a ler esta página (do Livro do Desassossego) pois efectivamente a escrevo; posso orgulhar-me, como de um filho, da fama que terei, porque, ao menos, tenho com que a ter”.

Ele sentiu que o seu génio criador estava prestes a dar fruto.


Os rostos da República: Fernando Pessoa (05)


A mãe acabou por levar Fernando para Durban, (na foto, o edifício da Town Hall) na África do Sul, em Janeiro de 1896. 
O poeta tem oito anos de idade. São estes sete anos e pouco de vida que impedem Fernando Pessoa de ser um poeta inglês, devido à sua grande ligação afectiva a Portugal.

De facto, durante as décadas de vida que passou em Lisboa como adulto, Fernando Pessoa quase nunca se referiu aos nove anos que esteve na África do Sul, a não ser para justificar porque dominava também a língua de Shakespeare.

Doía-lhe recordar aqueles anos ou sentiu-se em Durban alheio, um peixe fora de água? Ou ressentia-se do novo ambiente familiar?

Talvez tudo isso, mas a experiência pessoana em África foi essencialmente livresca, até porque se sabe muito pouco dos primeiros anos, onde estudou num colégio de freiras irlandesas.

Muito menos se sabe se mantinha fervor religioso, porque aos 17 anos já se declarava anti-católico até ao fim da vida. Apesar de admitir um “espírito religioso" com a consciência da “terrível importância da vida, essa consciência que nos impossibilita de fazer arte meramente pela arte”.

Pessoa chega mesmo a falar da “terrível e religiosa missão que todo o homem génio recebe de Deus” e assim se entende que, para ele, a obra literária devia servir a Humanidade e também Deus ou o Destino.

Nem mesmo as belezas naturais de Durban parecem ter causado grande impressão em Pessoa, porque nunca lhes faz alusão.

No entanto, esta estadia  possibilitou que absorvesse a língua e cultura inglesas como uma esponja que “secava” os livros que lia e estudava, através de um ritmo escolar estonteante. 

Em 1899, destaca-se como aluno em francês e inglês ao colocar-se em 48.º lugar entre 673 candidatos à School High Certificate, de 15 anos, quando ele tinha treze.

Foi esta diferença de idades que dificultou a sua integração social. Acanhado quanto baste, Pessoa não cultivava amizades e preferia divertir-se com jogos solitários ou a ler romances de mistério e aventura, com primazia para Charles Dickens.

Em 1901 surgem umas férias prolongadas do pai adoptivo em Portugal, permitindo viagens a Fernando, de Lisboa a Tavira e Ilha Terceira,onde permanece cm uma tia Anica, irmã da mãe.

É este ano de férias em Portugal que salva Pessoa para a literatura portuguesa, com os primeiros poemas, entre eles, “Quando ela passa”. Este poema demonstra que os primeros alicerces da sua produção poética em português estavam bem assentes.

No regresso a Durban, é matriculado numa escola de contabilidade que só funcionava à noite, pelo que Pessoa tinha os dias livres para se dedicar à sua paixão antiga – a leitura – e à nova – a escrita.

Pessoa não acaba as suas obras porque o seu espírito transbordava como um vulcão de nova s idéias e projectos que os distraíam dos que estavam em curso.

Era já um perfeccionista na escrita porque a vida lhe parecia irremediavelmente imperfeita, ao ponto de considerar que “só uma obra pequena podia atingir a perfeição”. 

É assim que é na poesia que Fernando Pessoa consegue completar as obras iniciadas.
Em 1903 o seu ensaio de inglês, na admissão à Univesidade do Cabo, recebe o prémio Queen Vitória Memorial Prize. Estamos na véspera do seu primeiro alter-ego (heterónimo), Charles Robert Anon, que prefigurava a o irreverente Álvaro de Campos.

É em Durban que se alimenta a grande admiração por Mahatma Gandhi que, ali, iniciou a sua caminhada anti-imperialismo britânico. Winston Churchill, correspondente de guerra, esteve ali preso pelos bóeres, quando Pessoa tinha 11 anos.

Embora anglófilo, Pessoa não sentia qualquer lealdade patriótica para com a Inglaterra e o seu império. Para isso contribuíram as leituras de Shakespeare, Milton, Lord Byron, Alexander Pope, Thomas Carlyle e Edgar Allan Poe.

Em 1905 embarca para Lisboa definitivamente, deixando África e Durban em pleno esquecimento em toda a sua obra, a não ser dois meses antes de morrer, ao ouvir  Un soir à Lima”, música que sua mãe tocava ao piano, em Durban.
Esta musica 
lembra-me da nossa sala, quente
Da África ampla onde o luar está
Lá fora vasto e indiferente” 
e conclui com uma alusão a 
“todo o luar de toda a África inundar
A paisagem e o meu sonho”.

Fernando Pessoa, em 47 anos de vida, ficou muitas vezes à janela, pouco participante do que acontecia em redor mas intimamente presente, gravando tudo o que via e sentia no fundo indelével da memória, ou da alma.

Os rostos da República: Fernando Pessoa (04)


Já aqui escrevemos que a vida de Fernando Pessoa foi uma constante divulgação da língua portuguesa: nas próprias palavras do heterónimo Bernardo Soares, "a minha pátria (sic) é a língua portuguesa". 

Em qualquer génio, há sempre um elemento de diferença, um grau de superioridade que não se explica, apenas se constata, mas a sua genialidade não nasce do nada.

O génio em formação beneficia de certas condições familiares ou ambientais ou é estimulado por acasos da vida que podem ser uma coisa simples, vista ou ouvida e logo esquecida que, numa criança, pode mudar todo o curso futuro da sua inteligência.

Em Fernando Pessoa não é difícil perceber porque floresceu tão cedo nem porque se manifestou no domínio das letras.

Ele é o primeiro filho de um casal muito culto e informado sobre a actividade “menos útil mas mais sublime da inteligência humana: a criação artística”. 

O pai era um apaixonado grande pela música e Richard Wagner era um  dos compositors preferidos, sobre quem escrevia crónicas nos jornais. Sabemos que Pessoa mesmo quando se esquivava, nos últimos anos, dos factos mundanos, continuava a gostar de ir a concertos de música clássica.

A Mãe, Madalena, era amante dos livros que lia em português e em francês e também fazia versos.

Havia também uma tia da mãe que fazia versos e que ele definiu como “mulher culta”, céptica em religião, aristocrática e monárquica e não admitindo no povo o cepticismo”.

Estes factos explicam que foi fácil a Fernando Pessoa aprender a ler e a escrever aos quatro anos de idade. A mãe ensinava-lhe também o francês pelo que o nosso escritor foi uma criança privilegiada.

A infância de Fernando Pessoa foi marcada or acontecimento inesquecíveis para o pequeno Fernando. O pai morre em 1893, quando ele tem cinco anos. A sua casa cheia de gente, de repente fica quase vazia, com uma avó Dionísia demente, e a família empobrece materialmente sendo obrigada a abandonar o casarão do Largo de S. Carlos.

Muda-se, com a família, para nova casa mais pequena e um ano depois perde um irmão que reagiu mal a uma vacina contra a tuberculose.
Toda a vida do poeta foi perseguida pelo medo de herdar uma das duas doenças que tanto ensombram a sua infância: a loucura da avó Dionísia e a tuberculose do pai.

Nunca manifestou sintomas do primeiro dos males e as afirmações de loucura em Álvaro de Campos eram aitudes literárias sem peso maior, e a alegada intenção de se internar num manicómio, numa carta à namorada Ofélia, foi um pretexto artifical para não se comprometer com ela.

No entanto, o receio da loucura é real na vida de Fernando Pessoa, sobretudo após o seu regresso a Lisboa, em 1905.

Com maior razção, receava ser vítima da tuverculose, dada a fragilidade do seu corpo, adoecimentos com frequência e embora não fosse hereditária, a tuberculose parecia ser uma ameaça na sua família. Vitimara o pai, o irmão e o tio.

Entretanto, a mãe de Pessoa conhece um oficial da Marinha, iniciando uma relação a que os familiares franziram o olho, um vez que Madalena tinha enterrado o marido há menos de um ano.
A vida em comum obrigava o casal a mudar-se para África. Que fazer com o filho Fernando? Temiam-se as febres tropicais. Ficava em Lisboa com a tia Maria ou era mandado para a Tia Anica, nos Açores? 
 
A este dilema, Fernando Pessoa responde com um poema à mãe: 

Eis-me aqui em Portugal 
Nas terras onde eu nasci. 
Por muito que goste delas, 
Ainda gosto mais de ti”.

É talvez o primeiro poema de Fernando Pessoa, escrito em 26 de Julho de 1896.

A mãe acabou por levar Fernando para Durban, na África do Sul, em Janeiro de 1896. O poeta tem oito anos de idade. São estes sete anos e pouco de vida que impedem Fernando Pessoa de ser um poeta inglês, devido à sua grande ligação afectiva a Portugal.

Ao longo da vida, Fernando Pessoa, dentro ou fora de Portugal, manteve sempre uma firme lealdade ao país onde nasceu e as muitas saudades exprimidas na sua poesia evocam a infância, não na África do Sul, mas em Lisboa, que para ele "era o lar, o regaço, o âmago da sua pátria amada”.

Os Rostos da República: Fernando Pessoa (03)



Em Fernando Pessoa encontramos uma das mais belas definições do artista, ou seja, “aquele que exprime o que não tem” ou aquele que “exprime o que sobrou do que teve”. Fernando Pessoa tinha ideias políticas e religiosas – muitas delas defendidas com ardor, mas a Verdade e a Vida eram o fogo que inspirava a sua obra e que esta, por sua vez, buscava.

Fernando Pessoa, retratado acima por Felizardo Cartoon, afirma-se assim como um “polemista apaixonado” que era frequentemente “as duas coisas em simultâneo” ou não tivesse ele escrito, em Aniversário, em 1930: “no tempo em que festejavam o dia dos meus anos, eu era feliz e ninguém estava morto”.

Ele chegou a defender, com argumentos imbatíveis posições políticas ou teorias improváveis ou que não compartilhava, quanto mais não fosse “pelo prazer de errar”.

Sou um pobre recortador de paradoxos, mas possuo a qualidade de arranjar argumentos para defender todas as teorias, mesmo as mais absurdas” – dizia ele, em 1916. O melhor exemplo é “O banqueiro anarquista”, segundo o qual, o banqueiro, "na sua busca de liberdade é o verdadeiro anarquista”. 

Questionava assim, de forma corrosiva a viabilidade e a sinceridade dos princípios anarcas.

Para os saudosos da monarquia, Pessoa apoiava-os num dia e no dia seguinte troçava deles. Era a forma que encontrara para se exprimir contra o governo que estivesse no poder.

Foi antimonárquico até à medula, enquanto existiu rei e depois tornou-se um crítico severo da República que não lhe parecia muito melhor. Talvez por isso, ele é um dos mais fervorosos apoiantes do caminhense Sidónio Pais, apenas depois de ter sido assassinado, em 1918.

Manda a verdade dizer – ou agora se percebe – que Fernando Pessoa nunca se pronunciou contra a ditadura militar instaurada em 1926 e depositou algumas esperanças em António Oliveira Salazar, enquanto ministro das finanças.
Em 1935 torna-se “resolutamente antifascista, quando se apercebeu dos fortes limites à expressão individual impostos pelo Estado Novo” (cf. ZENITH, Richard, in op. cit. pp. 11 a 15).
Pessoa, fossem quais fossem as mudanças políticas, sempre defendeu o direito do indivíduo a exprimir-se livremente, na palavra escrita e falada e no próprio estilo de vida, sendo bastante avançado para o seu tempo.

É essa postura que o leva a reeditar Canções, do assumidamente homossexual António Botto, ou então Sodoma Divinizada, do ainda mais assumido e ousado Raul Leal.

Quando um grupo de estudantes conservadores lançou uma campanha contra a “literatura de Sodoma”, provocando a apreensão dos dois livros pela polícia, Pessoa contra-ataca com duas folhas volantes em que criticava a pretensa moral dos estudantes e defendia com paixão os seus autores.

Ao contrário do seu amigo e vanguardista Almada Negreiros, Pessoa não gostava de afrontar os burgueses com roupas ou atitudes extravagantes ou actos chocantes, pois preferia aparecer através da palavra escrita.

O escândalo e a polémica eram o seu deleite, ao ponto de o terem apelidado de literato do manicómio. Com o nome de Álvaro de campos, em 1917, publica um manifesto “MERDA” em que atacava o governo português e os outros aliados como os alemães.

Pessoa protagonizou uma série de controvérsias e acontecimentos que deram origem a notícias mais ou menos sensacionalistas. Muitos levavam à letra tudo o que Pessoa dizia e escrevia, nunca percebendo o espírito deste criador-fingidor.

A repartição da sua obra por vários seres inventados começou com uma brincadeira de infância e os heterónimos mostram que Pessoa, de certa maneira, nunca quis crescer.

Preferiu “evitar responsabilidades, brincar, experimentar, imaginar, fazer de conta isto ou aquilo, não sendo de facto um homem normal e adulto como os outros” (cf. ZANITH, Richard, in op.cit, p. 15). Ou não? Ele nascera já adulto, "com precoce ambição literária, um forte sentimento patriótico e a assumida missão de ajudar a sua pátria amada através do seu dom da palavra”? (cf. IDEM, Ibidem).

De facto, ele queria ensinar e incutir cultura entre os compatriotas, ajudando-os a possuir “convicções profundas” que só as têm as “criaturas superficiais”. “Os que não reparam para as coisas são sempre da mesma opinião, são os íntegros e os coerentes. A política e a religião gastam dessa lenha e é por isso que ardem tão mal ante a Verdade e a Vida” – escreveu ele em “Crónicas da vida que passa”.

Escreveu sempre, desde o primeiro poema aos sete anos, até ao leito de morte. Importava-se com a intelectualidade do homem, e pode-se dizer que a sua vida foi uma constante divulgação da língua portuguesa: nas próprias palavras do heterónimo Bernardo Soares, "a minha pátria (sic) é a língua portuguesa". 
O mesmo empenho é patente no poema:

Agora, tendo visto tudo e sentido tudo, 
tenho o dever de me fechar 
em casa no meu espírito e trabalhar, 
quanto possa e em tudo quanto possa, 
para o progresso da civilização 
e o alargamento da consciência da humanidade.