Monday, September 17, 2012

Os rostos da República: Manuel Cerejeira (01)


Quando alguém escreve que “a Igreja em Portugal não tem, nem quer ter – a menos que o estado lhe declare guerra – a menor influência política”, todos (à luz dos ideias do nosso tempo) temos o dever de estar em completo acordo. Mas, quando dizemos que foi o Cardeal António Cerejeira quem escreveu isto, ou nos sentimos diante do “prelado de um regime” ou, como lhe chamaram, perante o Cardeal com duas faces.

A imagem que perdura de Manuel Gonçalves Cerejeira sofreu várias mudanças após o período da ditadura de Salazar e em mais de trinta anos de democracia.

A seguir ao 25 de Abril de 1974, Cerejeira passou de chefe da igreja Portuguesa admirado pelos católicos a figura ambígua, enfeudada ao sistema ditatorial, legitimador dos desmandos do Governo do Estado Novo e da PIDE.

Trinta e cinco anos após a sua morte, em 1977, passa a ser de novo admirado por alguns, como um defensor da Liberdade e da Independência da Igreja, mesmo se teve de entrar em compromissos com o Estado, embora uma grande maioria diga que isso é uma mistificação, acusando-o de ter sido quem “atou a barca de Pedro ao mastro de César, um César ditatorial”.

Para Irene Flunser Pimentel (cf. Cardeal Cerejeira, ed. Círculo de leitores, Lisboa, 2002) permanece a “visão de Cerejeira e Salazar, amigos e cúmplices, (...) de uma hierarquia católica enfeudada ao estado Novo e de um ditador protector da Igreja e servindo-se dela”.

Cerejeira continua a surgir como o bispo reaccionário, elitista, cardeal de vestes luxuosas, com gestos exuberantes e exibicionistas, sendo uma “figura chocante na sua ostentação, num país de católicos, maioritariamente a viver na miséria e submetidos a uma Igreja rica e a um Estado opressivo e corporativo” que usa a caridade “para afirmar a sua boa consciência”.

Pessoalmente, as opiniões dividem-se entre o “simpático e caloroso ou distante”, até ao cardeal que tratava os seus padres como “filhos impossibilitados de atingir a maioridade”.
Há quem o defenda como alguém “capaz de fugir às questões difíceis, tolerante, defensivo, hesitante e fraco – como dizia o seu amigo Salazar – ou o defina como “interventivo, severo e castigador que não hesitava em purgar os abcessos, usando métodos estalinistas”.

De ambíguo a hipócrita ou de amante da riqueza e do espectáculo a humilde, simples, amante da pobreza são vários os acentos que se lhe colocam.

Sabe-se que Cerejeira conheceu e tornou-se amigo de Salazar na juventude e seguiu um caminho diferente desde que o amigo foi para o Governo e ele para a chefia da Igreja mas não lhe é perdoado o silêncio perante a violência política, da censura e das vítimas da repressão, com o único objectivo de manter a independência da Igreja.

Todas as opiniões podem conter uma parte da realidade, mas há uma certeza ainda hoje: Cerejeira motivou tudo menos indiferença e marcou uma época, no campo eclesial e no espaço político e social.

Há uma pergunta interessante a fazer: como terá olhado ao morrer, contente de ser pobre e desejoso de ser enterrado numa campa rasa para os seus quase 90 anos de vida?

Como recordou o distante ano de 1888, em que nasceu numa zona rural do Minho, em Famalicão, no seio de uma família pobre e católica, que conseguiu através dos estudos no Seminário de Braga fazer com que ele fosse uma figura marcante do regime e não um obscuro pároco de aldeia?

Como Salazar, foi através do Seminário que Cerejeira conseguiu chegar ao trono de Minerva, em Coimbra, num percurso de ambos que não deixa de ser coerente e é fruto daquele tempo.
Ambos defendem em Coimbra a democracia cristã dos finais do séc. XIX, orgânica e corporativa contra a monarquia e o republicanismo, com a salvaguarda da liberdade de acção e de culto da Igreja.

Ambos permaneceram solteiros, mas por razões diferentes, para servir melhor a Igreja (num caso) e o Povo (no outro) mas tinham temperamentos diferentes.

O Cardeal é definido como “malicioso, apaixonado, extrovertido, irónico, romântico, sentimental, descuidado, desordenado, inovador, simpático, alegre, sensual e hesitante” contra um beirão “sisudo, racional, frio, reservado, discreto, metódico, infeliz, ordenado, organizado, avesso a novidade, orgulhoso, ambicioso, contraditório, austero e feminino". A hesitação era a única característica comum, encoberta pelo uso da força que lhes desfazia a imagem de incapacidade de decisão e de escolhas.

Aluno brilhante em Coimbra, Manuel Cerejeira doutora-se em história e assume-se como professor e investigador, procurando a legitimação  do catolicismo, do conservadorismo e do nacionalismo.

Lendo muito, manteve correspondência com adversários políticos e religiosos, excepto aqueles que não fossem tocados pela “heresia da nossa idade”, o marxismo.

Como cardeal, perdurou na nossa memória colectiva como alguém rendido ao Estado Novo, que nunca protestou perante as violências do regime, as torturas, as prisões, a PIDE, a Censura, a guerra colonial, a miséria e a ausência total de liberdades.

Ele é a corporização d uma Igreja que se “serviu do regime para influenciá-lo e manter privilégios”, através de meros encontros pessoais e protocolares.

Quando foi criada a Mocidade portuguesa, Cerejeira temeu pelo controlo da educação da juventude, oferecida por Salazar e “enervou-se” porque a Igreja de Cerejeira era a “principal defensora dos direitos da família e da Juventude, para disputar ao estado a influência sobre estas”.

Assim, a Igreja mantinha o “direito exclusivo de actuar no seu seio e catequizá-los” e Cerejeira cuidou, em primeiro ligar, de assegurar a independência da sua Igreja, ao ponto de Cerejeira defender o Estado Novo plesbicitado na constituição de 1933.

É por isso que Cerejeira, apesar de tudo, aprova a Concordata sem exigir maior apoio financeiro estatal ao clero e indemnizações à Igreja por causa das confiscações de 1910.

O que preocupava Cerejeira não era a essência do regime ditatorial mas os ataques à Igreja e à Acção católica, daí que tenha recusado sempre qualificar o governo de Salazar como autoritário

No comments: