Monday, September 17, 2012

Os rostos da República: Manuel Cerejeira (10)


A questão da viagem papal à Índia constitui um marco revelador do afastamento do Vaticano face à política colonial de Salazar e do distanciamento progressivo em relação ao regime por parte de muitos católicos que engrossavam a “frente nacional”.

Em Outubro de 1965, mais de cem católicos redigem um manifesto dirigido à Conferência Episcopal contra a política no Ultramar e a invocação do nome de Cristo para servir de capa a um “nacionalismo exacerbado e a atitudes totalitárias que repugnam à consciência cristã”.

De facto, a atitude de Cerejeira perante a guerra colonial ficou definida no início do conflito em 1961, ao manter o silêncio sobre a detenção em Março do Vigário geral da diocese de Luanda, Mendes das Neves, acusado de ser o “chefe da organização responsável pelos actos de terrorismo”, assim como a deportação sob prisão de nove padres angolanos, entre os quais Joaquim Pinto de Andrade.

Ele, “nunca fez ouvir a sua voz para condenar a guerra colonial” (cf. Arquivo PIDE/DGS) limitando-se aqui e além a criticar a falta de financiamento do ensino católico nas colónias.

A este manifesto associa-se o episcopado de Angola com uma pastoral em meados do ano seguinte, num mês de Maio em que a repressão se abateu sobre estudantes universitários de Lisboa e sobre a Sociedade Portuguesa de Escritores que acaba por ser encerrada quando é atribuído o seu premio literário ao angolano Luandino Vieira, preso pela Pide.

Os silêncios do Cardeal Cerejeira perante o exílio imposto ao bispo do Porto e a sua inércia diante das perseguições movidas à população discente das escolas católicas mereceram violenta crítica em cartas de Cunha Leal ao Patriarca (cf. Diário de Lisboa, 13.12.1965).

Com o termo do Concílio Vaticano II surge em Portugal, em 1966, um breve Movimento de Resistência Cristã que congrega vultos como António Alçada Baptista, Bénard da Costa, numa altura que o Governo continuava a mostrar quem mandava ao vetar o nome de António para novo Bispo da Beira proposto pelo Papa. Também Manuel Falcão, Bispo de Beja, foi impedido de ser cardeal ou “sequer bispo de uma qualquer diocese” enquanto Salazar fosse presidente do Conselho, como escreveu Franco Nogueira na sua obra já aqui citada.

Foram também razões políticas invocadas para fechar a cooperativa católica Pragma, tendo os seus dirigentes sido presos porque alegadamente difundiam “ideias dissolventes e possuíam na sede panfletos do PCP e discos antipatrióticos”.

O ano seguinte, 1967, antevia-se importante para o regime por causa da visita do Papa a Fátima, a convite do episcopado português, mas Paulo VI – o Papa que Salazar assegurara que “nunca entraria em Portugal enquanto fosse vivo” – não aceita aterrar em Lisboa nem pernoitar em Portugal.

Salazar aceitou as condições papais mas ficou agastado, sempre aproveitou todos os momentos para tirar proveito político da visita oque deixa muitos católicos desiludidos, especialmente pela condecoração ao director da PIDE, Silva Pais.

Com 38 anos de patriarcado, o cardeal Manuel Cerejeira entende que é chegada a hora de um balanço, reconhecendo que o caso do Bispo do Porto abriu uma “larga ferida na consciência católica”.
O opúsculo mereceu palavras pouco elogiosas e até “desdenhosas” de Salazar que qualificou o “livrinho” de “defensivo e sem coragem para contra-atacar", da parte de um “fraco que nunca teve a coragem de castigar alguém”.

Raúl Rego respondeu ao balanço de Cerejeira mas este foi apreendido nas livrarias e o autor foi preso, tendo sido libertado a pedido de Cerejeira, por intermédio de Moreira das Neves. Também o bispo do Porto lhe lembrou o Te Deum na Catedral do Porto para assinalar um facto histórico discutível, “numa Sé ocupada num país ocupado”.

Cerejeira não acusou a recepção desta Carta de D. António Ferreira Gomes que atribuía a crise da Igreja lusa “às cuidadosas ausências do presidente do Episcopado e sobretudo às suas presenças onde não eram devidas” (cf. FERREIRA, António Gomes, in Carta ao cardeal Cerejeira, Lisboa Ed. Dom Quixote, 1996).

A contestação a Gonçalves Cerejeira alastra como uma “mancha de óleo” na década de 60, primeiro por inspiração em Ferreira Gomes, depois pela abertura do Vaticano II, cuja presença do Bispo do Porto foi difícil de gerir pela diplomacia portuguesa. 
Nuno Teotónio Pereira, António José Martins e Alçada Baptista são nomes que abalam a “cumplicidade Salazar-Cerejeira” e aceleram o crepúsculo do Cardeal.

O último ano de Salazar no Poder foi também um annus horribilis para Cerejeira, a completar 80 anos. Teve de enfrentar as duras críticas de Raul Rego e D. António ferreira Gomes e de cada vez mais sacerdotes rebeldes e lidar com a crescente hostilidade dos católicos perante a guerra colonial. 

Anunciava-se, em 1968, o crepúsculo da dupla de «amigos» que marca a vida portuguesa durante quatro décadas.

Os rostos da República: Manuel Cerejeira (09)


Chegamos ao momento do descrédito total do “príncipe” da Igreja em Portugal. Nem Salazar estava a seu lado, como se vê na inauguração do Monumento a Cristo Rei, em 1959, enviando Américo Tomás, a quem ordena discrição nas cerimónias.

O silêncio do Cardeal Gonçalves Cerejeira, face às atrocidades do regime salazarista, tornou-se “ensurdecedor e até cúmplice do regime" quando, ao chegar à fronteira de Valença, a 18 de Outubro de 1960, o bispo do Porto foi impedido pela PIDE de entrar no país, iniciando um longo exílio de dez anos.

Dos raros prelados que reagiram a esta afronta salazarista, salva-se Alves de Pinho que encoraja Cerejeira a “encabeçar um movimento de protesto de todos os bispos portugueses em defesa” do bispo banido. O pedido do Arcebispo de Luanda ficou sem resposta.

O ano seguinte é descrito como o “annus horribilis” para Salazar e o regime, com o desvio do paquete Santa Maria por um comando oposicionista, o início da guerra colonial em Angola, a invasão e anexação de Goa, Damão e Diu pela Índia e a tentativa de assalto ao quartel de Beja no fim do ano.

No decurso da campanha eleitoral para a Assembleia Nacional, em 1961, dois católicos de renome concorrem pelas listas da Oposição – Lino Neto e António Alçada Baptista – e o episcopado emite uma nota dando apoio indirecto às listas da União Nacional e lembrava que não era lícito aos católicos “votar nos comunistas” porque traíam as “suas responsabilidades”.

Intensa agitação estudantil se regista em Lisboa e Coimbra e um quartanista de direito é eleito para a presidência do CADC que Cerejeira fundara. O regime pressiona o bispo de Coimbra para não validar a eleição mas este, aconselhado por Eurico Dias Nogueira, actual Arcebispo Emérito de Braga, respeita a vontade das maiorias.

O Cardeal não escondia a preocupação com a “crescente atracção que o comunismo exercia sobre muitos militantes católicos, desesperados com as injustiças sociais e a ausência de liberdade do Estado Novo”. 

Numa tentativa de equidistância, o Cardeal Cerejeira, depois de atacar à esquerda, assestou baterias sobre a direita, condenando certo anticomunismo “por defender privilégios e combater o comunismo não tanto pelos seus erros, como pelas duas verdades e concordando com os críticos da economia liberal e da miséria imerecida” – expressão de Ferreira Gomes - dos trabalhadores” (cf. NOGUEIRA, Eurico Dias, “Louvor e sufrágio por um lousadense ímpar”, in Lusitania Sacra, p. 233.).

Aquele que um dia desabafou que “o rio Ave passara por Lousado só para me saudar quando nasci” é chamado a participar, em 1962, na abertura do Concílio Vaticano III liderando uma representação portuguesa conservadora, em que "Sebastião de Resende, Ferreira Gomes mostraram posições mais abertas ou, como Eurico Nogueira e Vieira Pinto, atitudes mais progressistas” (cf. NOGUEIRA, Franco, in Salazar, Atlântida Editora, Coimbra, Vol. V, pp. 429-444).

Salazar não escondia a sua preocupação, especialmente com a encíclica Pacem in Terris, de Abril de 1963, que abria largas perspectivas ao progressismo, que ele definiu como um “desatino”. Uma intervenção cirúrgica retém Cerejeira em Portugal, após a morte do Papa João XXIII, em Junho, mas não o impede de emitir uma nota pastoral contra o monopólio educativo do Estado, relembrando que o sistema escolar português estava longe de dar cabal cumprimento aos princípios constitucionais e concordatários de liberdade de ensino.

Neste documento rebate as acusações crescentes de que a Igreja apenas se preocupa com os filhos dos ricos mas novo problema estala nas relações entre Cerejeira e Salazar: o papa Paulo VI anuncia uma visita à Índia, para o presidir ao Congresso Eucarístico de Bombaim e não exclui uma visita a Goa. O Papa enfurece Salazar que ameaça Cerejeira de denunciar a Concordata.

Assustado, o cardeal encontra-se duas vezes com o Papa que, por fim, lhe assegura não ir a Goa nem desejar que a viagem fosse considerada um acto menos amistoso para Portugal. Salazar sossega mas mandatou Franco Nogueira para dizer ao Núncio Apostólico em Lisboa, “de uma maneira brutal”, “esperar morrer sem ver no país um Papa que tanto agravara Portugal”.

O recado do ministro deixou o Papa magoado e os bispos portugueses sentiram-se consternados, quando ainda se encontravam no Concílio, enquanto a censura dava ordens para não deixar publicar qualquer menção à visita do Papa à Índia, o que leva António Ribeiro, colaborador religioso da RTP, mais tarde Patriarca, deixar a estação ao ser-lhe vedada a realização de um programa sobre o acontecimento.

A censura cortou o discurso do Papa no jornal católico Novidades e ameaçou suspender o jornal. Estas proibições foram secundadas por Cerejeira “sob pena do governo cortar relações com a Santa Sé”. 

Quinze padres de Setúbal não aceitaram o recado do Cardeal e em Évora quatro foram presos pela PIDE.

Os rostos da República: Manuel Cerejeira (08)



A entrega de um capelão da Armada, implicado no golpe da Sé, em 1959,  por Cerejeira é o melhor exemplo da colaboração do cardeal com a PIDE mesmo que a repressão atingisse os “seus padres”.
O Cardeal não podia ignorar o que se passava na PIDE, tendo sido informado pela própria sobrinha, presa em 1963, que os “detidos eram sujeitos a tortura do sono e se ouvia à noite pancadas, gritos e corpos a cair” (cf. Arquivo da PIDE/DGS, pc. do GT n.º 688.

Outra postura lamentável de Cerejeira foi a sua postura face à Censura, uma vez que a Concordata não permitia que a imprensa Católica a ela ficasse sujeita. No entanto, o Estado violou várias vezes esse acordo internacional, como aconteceu com o Bispo da Beira ou o processo dos Bairros de Lata.

O Bispo do Porto, Ferreira Gomes, desabafou que o Patriarca tenha colaborado com a censura ao rejeitar um pedido de publicação de um esclarecimento, no “Novidades”, sobre a recusa de uma audiência solicitada em nome da Campanha de Delgado.

É nesse ano que aparece o célebre discurso jubilar em Coimbra em que o antigo professor condena os “cristãos que punham máscaras a desfigurar o rosto autêntico do cristianismo, acrescentando-lhe etiquetas".

Afirmava-se a dissidência dos “católicos progressistas”, tema de violenta crítica de Salazar numa Intervenção das Nações unidas, em Dezembro de 1958.Nessa intervenção, Salazar ameaça romper com a Concordata à qual os bispos respondem que a hierarquia sempre dera "provas de respeito pelas autoridades públicas mas, que, como cidadãos, os leigos eram livres de optar por qualquer actuação no plano político, económico, social ou cultural”.

Esta posição dos bispos portugueses anima os leigos católicos e alguns padres que não se revêem nas ideias de Cerejeira e origina a célebre carta “As relações entre a Igreja e o Estado e a Liberdade dos Católicos”. Os autores – Abel Varzim, Silva Botelho, Teixeira da Fonte, Perestrelo, Costa Pio, etc. – foram reprimidos pelo regime, perante o silêncio do Patriarca. Tinham sido assassinados, no Porto, dois opositores, pela PIDE que perseguiu os autores do texto. É o início do seu descrédito total.

Nem Salazar estava a seu lado, como se vê na inauguração do Monumento a Cristo Rei, em 1959, enviando a “marioneta” Américo Tomás, a quem ordena discrição nas cerimónias.

Os rostos da República: Manuel Cerejeira (07)


Terminamos a última crónica, introduzindo a ideia de que o ano de 1958, com o regime abalado pelo “terramoto delgadista” nas eleições presidenciais, constituiu um alçapão para a credibilidade da Igreja Portuguesa, liderada pelo Cardeal Conçalves Cerejeira.

Muitos católicos ergueram-se contra a Igreja e o regime de Salazar percebia que se quebrara a “frente nacional” em que se alicerçava o regime. A fraudulenta derrota de Humberto Delgado mostrou a evolução da sociedade portuguesa urbanizada e industrializada que corroera a base rural maioritária de Portugal tradicional e católico.

Em pena campanha eleitoral, 28 católicos, entre os quais o presidente e vice-presidente da Juventude Universitária Católica (JUC), dinamizadas por Cerejeira, ergueram-se contra a censura que impedia a publicação de textos sobre as relações pouco evangélicas entre a Igreja e o regime de Salazar. Essa censura contribuiu para uma “completa falta de esclarecimento doutrinário de grande parte dos nossos católicos” – defendeu o censurado e preso Francisco Lino Neto.

Este católico foi transformado em ícone por uma fotografia onde surgia coberto de sangue após a PIDE reprimir os apoiantes de Delgado na Estação de Santa Apolónia. Outros católicos, como Alçada Baptista, Francisco Sousa Tavares e Sophia de Mello Breyner Andresen apoiaram a candidatura do General Sem medo, dando origem ao movimento dos católicos progressistas liderados por Bénard da Costa, presidente da JUC, entre outros grandes pensadores e criadores do século XX português.

O regime não recupera do grande susto quando o bispo do Porto, Ferreira Gomes, envia a Salazar um pró-memória onde formula críticas ao Estado Novo. Delgado escreve a Cerejeira a pedir que intervenha contra a “burla eleitoral” e a ausência de liberdades para os católicos, recebendo como “resposta apenas o silêncio” (cf. PIMENTEL, Irene Flunser, in Cardeal Cerejeira, Ed. Círculo de Leitores, Lisboa, 2002, pp.154 a 160).

Mas há um facto que não deixa calado Cerejeira, quando um militante comunista, Raul Alves, se suicida ao lançar-se do terceiro andar da sede da PIDE, em Lisboa. 

A embaixatriz do Brasil denunciou a Cerejeira este caso e os “gritos aflitivos a que ela assistia”, pois morava em frente à sede da Polícia Política. Cerejeira aceitou as “mentiras” oficiais: “tratara-se de uma tentativa de fuga e a única culpa da PIDE era a de não ter exercido a suficiente vigilância sobre o preso por se tratar de um comunista de baixa categoria”.

São alguns dos exemplos – como pedido de amnistia para Raul Rego. Em 1968 – que foram empolados pelos seus biógrafos para demonstrar uma não fundamentada preocupação quanto aos presos políticos porque a prova da verdade estava para chegar: um capelão da Armada, implicado no golpe da Sé, em 1959, é entregue por Cerejeira. Ou seja, O cardeal colaborava com a PIDE mesmo que a repressão atingisse os “seus padres”.

O pior é que o Cardeal não podia ignorar o que se passava na PIDE, tendo sido informado pela própria sobrinha, presa em 1963, que os “detidos eram sujeitos a tortura do sono e se ouvia à noite pancadas, gritos e corpos a cair” (cf. Arquivo da PIDE/DGS, pc. do GT n.º 688. Cerejeira soube do padre que enviou à prisão de Caxias para visitar a sobrinha que "os presos políticos não eram tratados com tolerância, humanidade nem de maneira cristã”.)

Outra postura lamentável de Cerejeira foi a sua postura face à Censura, uma vez que a Concordata não permitia que a imprensa Católica a ela ficasse sujeita. NO entanto, o Estado violou várias vezes esse acordo internacional, como aconteceu com o Bispo da Beira ou o processo dos Bairros de Lata.

O Bispo do Porto, Ferreira Gomes, desabafou que o Patriarca tenha colaborado com a censura ao rejeitar um pedido de publicação de um esclarecimento, no “Novidades”, sobre a recusa de uma audiência solicitada em nome da Campanha de Delgado.

É nesse ano que aparece o célebre discurso jubilar em Coimbra em que o antigo professor condena os “cristãos que punham máscaras a desfigurar o rosto autêntico do cristianismo, acrescentando-lhe etiquetas". Afirmava-se a dissidência dos “católicos progressistas”, tema de violenta crítica de Salazar numa Intervenção das Nações unidas, em Dezembro de 1958.

Nessa intervenção, Salazar ameaça romper com a Concordata à qual os bispos respondem que a "hierarquia sempre dera provas de respeito pelas autoridades públicas mas, que, como cidadãos, os leigos eram livres de optar por qualquer actuação no plano político, económico, social ou cultural”.

Esta posição dos bispos portugueses anima os leigos católicos e alguns padres que não se revêem nas ideias de Cerejeira e origina a célebre carta “As relações entre a Igreja e o Estado e a Liberdade dos Católicos”.

Os autores – Abel Varzim, Silva Botelho, Teixeira da Fonte, Perestrelo, Costa Pio, etc. – foram reprimidos pelo regime, perante o silêncio do Patriarca. Tinham sido assassinados, no Porto, dois opositores, pela PIDE que perseguiu os autores do texto.

É o início do seu descrédito total. Nem Salazar estava a seu lado, como se vê na inauguração do Monumento a Cristo Rei, em 1959, enviando a “marioneta” Américo Tomás, a quem ordena discrição nas cerimónias.

Os rostos da República: Manuel Cerejeira (06)


A campanha eleitoral, em 1945, com a participação de católicos no Movimento de Unidade Democrática (MUD) marca o começo de mudança na imagem de Cerejeira que começa a ser acusado de “amarrar a barca de Cristo à barca de César”.

Cerejeira sente-se obrigado a vir dizer que a Igreja “estava acima e fora da política concreta de regimes, sistemas, governos, partidos, programas, pessoas enquanto estes respeitem a liberdade da Igreja e os princípios fundamentais da ordem moral, social e política”.

O Estado Novo não atentava contra o altar e esta atitude gerou críticas de ambos os lados, especialmente o MUD porque ele não criticava o Governo e omitia a falta de liberdades e a miséria em que viviam os trabalhadores.

Cerejeira há-de recordar dez anos depois os desgostos dos anos quarenta. Um dos casos foi o movimento pacifista Metanóia, no qual estiveram activos os irmãos Sá da Costa e o padre Joaquim Alves Correia, autor de um artigo censurado e de um livro. Cerejeira desautorizou o livro e calou-se quando o autor foi forçado ao exílio, em 1946.

Também a atitude do seu amigo Francisco Veloso e do padre Abel Varzim, assistente da LOC, não deixaram de marcara o Cardeal. A intervenção de Cerejeira nas eleições de 1946 desagradou a Salazar que recusou ir a Fátima.

Também a reforma da educação primária e secundária arrefeceu as amizades entre os dois num momento em que aparece na cena política portuguesa o Partido Comunista Português. Em 1947, Álvaro Cunhal piscava o olho aos trabalhadores católicos mas condenava a Hierarquia pelo apoio quedava ao regime e mandatar o clero a pregar “o ódio aos comunistas” e se colocar ao lado do Estado Novo, “um cardeal milionário, com acções na Mabor, sempre ao serviço dos ricos, querendo falsamente fazer-se passar por pobre” (cf. Arquivo da PIDE/DGS.)

A Acção Católica começava a distanciar-se do regime e a denunciar a precária situação dos trabalhadores, com o Padre Abel Varzim a insurgir-se contra “o abandono por parte do Estado dos operários à avidez de muitos miseráveis patrões”.

O seu jornal “O Trabalhador” era extinto em 1948 e o padre Abel Varzim é afastado dos cargos que ocupava. Cerejeira abandonava o padre crítico avisando os militantes da Acção católica que não lhes cabia lutar pela emancipação total da classe operária.

Começava aqui o afastamento crescente entre a Igreja e os trabalhadores “tocados pelo fermento revolucionário” e as acusações de comprometimento da Igreja com o Estado não cessavam de crescer, mesmo no seio dos católicos, entre os quais se contavam Orlando de Carvalho, do CADC de Coimbra.

Fazendo passar a ideia de que Norton de Matos era anticlerical, o Estado Novo consegue novo fôlego nas presidenciais de 1949. Calando a oposição através da Censura, Cerejeira refugia-se dentro da Igreja e só voltou a falar da política na ocupação indiana de Goa, Damão e Diu. Os problemas da Igreja nas Colónias ou dos movimentos operários tiveram a indiferença como resposta do Cardeal... que ia perdendo qualquer autoridade moral diante dos portugueses e dos católicos insatisfeitos com o endurecimento do velho regime, durante a década de 50.

Impondo Fátima ao país, cultivando a pompa e circunstância, satisfazendo o seu apetite por longas viagens, aquele que tinha sido uma referência dos portugueses contra os apetites vorazes do regime caíra em progressiva decadência...ostentada em miríades de sessões solenes banais e encenadas para amortecer a queda do regime.
Anunciava-se um ano de 1958 de verdadeira crise para a Igreja portuguesa, com o abalo causado pela campanha do general Humberto Delgado que aglutinou à sua volta muitos católicos que se ergueram contra este Estado Novo.


Os rostos da República: Manuel Cerejeira (05)


Nesta altura, o Cardeal Cerejeira tentava reivindicar mais para a Igreja, manifestando preocupação pela ausência do projecto de isenção de impostos para as residências paroquiais e episcopais, bem como dos dias feriados.

No ano de 1938, o ministro da Educação Nacional convida o cardeal a visitar o acampamento nacional da Mocidade Portuguesa (MP) mas ele declinou o convite argumentando que ficara dolorosamente surpreendido com idêntico convite feito à Juventude hitleriana, o que era “ofensivo e perigoso para a consciência católica portuguesa” bem como “pouco digno da altivez nacional, sabido o inferior conceito que os alemães têm de nós, filhos (segundo eles) de uma raça inferior e negróide” (cf. Geraldes Freire, in Resistência católica, já citada).

A mesma ideia sobre a MP repassa num discurso proferido no final desse ano ao clero de Lisboa, um ano depois de condenar o comunismo, o que motivou protestos do embaixador alemão em Lisboa. Cerejeira limitava-se a citar “Mit brennender Sorge” do Papa Pio XI, contra os excessos do regime hitleriano, preocupado com o facto dos regimes totalitários sufocarem a Acção Católica.

Para Cerejeira era certo que o nazismo queria limitar a religião aos templos e substituir a “concepção cristã pela Weltanschauung racista” erigida em nova religião da Nação.

Recusando a tutela eclesiástica do Estado e a tutela política da Igreja, com a morte de Pio XI e a eleição de Pacelli (Pio XII) desenvolve esforços para acelerar a concordata com Portugal, "essa nação tão gloriosa que tanto fez pela dilatação da fé, nação nobre, que está renascendo”.

Em 1 de Setembro desse ano de 1939, começava a II Guerra Mundial, com a invasão da Polónia pela Alemanha e Salazar proclamava a neutralidade. Cerejeira avisava que “alguém no seu louco orgulho (Hitler) de resolver pela força as questões dos homens, acaba de lançar fogo ao mundo” e uns dias mais tarde, era Mussolini o alvo das críticas de Manuel Cerejeira.

Lamentavelmente, Cerejeira não deixou de apoiar outros regimes autoritários e fascizantes porque eram amigos do catolicismo. Vejam-se os casos de Pétain e de Salazar.

Enquanto a guerra alastrava, o Estado assinava com a Santa Sé a Concordata e o Acordo Missionário que não deixaram Salazar satisfeito porque o Vaticano cedeu nas indemnizações à Igreja dos bens expropriados no fim da monarquia.

Foi tão difícil o acordo por causa das questões do casamento e do divórcio que o cardeal Ciriacci, núncio em Lisboa, definiu Cerejeira como “encarnação viva do demónio”.

O mesmo se passou com o reconhecimento das tarefas da Acção católica mas aqui acabou por não haver acordo, por intransigência de Salazar. A Igreja recuperava os templos e seminários que lhe tinham sido retirados mas os paços episcopais não ficaram isentos de impostos, como desejava Cerejeira.

Numa visita a Moçambique para a inauguração da Catedral de Lourenço Marques (Maputo) , em 1944, deixa escapar uma leve alusão à futura independência das colónias.

Em 1945, com a paz assinada, Cerejeira agradece a Salazar pela “defesa de Portugal do flagelo da guerra” e tratava-o como “um eleito, quase um ungido de Deus” mas de seguida alertava-o para “a urgência de distribuir víveres necessários ao sustento do povo, em vez de os deixar a apodrecer nos celeiros”.

Os rostos da República: Manuel Cerejeira (04)


É Manuel Gonçalves Cerejeira quem pressiona António Oliveira Salazar a aceitar o cargo de ministro das Finanças em Abril de 1928.

A portaria dos sinos gera um conflito que leva à demissão do primeiro-ministro, antecedida da demissão de Salazar que não é aceite e acaba por reforçar a sua posição.

Em Novembro de 1929, Cerejeira era nomeado Patriarca de Lisboa e, automaticamente, cardeal, o mais jovem membro do Colégio dos Cardeais, sendo conhecido como “Cardeale bambino”.

Cerejeira beneficiava da conjura dos sinos, porque a primeira escolha foram os Arcebispos de Évora e de Braga (Manuel Vieira de Matos) e, entretanto, Salazar criava dois pilares do regime – Acto Colonial e a União Nacional, em 1930 - , enquanto Cerejeira enervava o ditador com pedido de amnistia para alguns opositores. Salazar vai apresentar cumprimentos a Cerejeira e separam-se as águas. Cerejeira e Salazar despediram-se com “um aperto de mão que não foi igual a nenhum dos anteriores. As relações colaborantes passaram a ser frias e graves” – descreve Franco Nogueira.

Ao reivindicar a Liberdade para a Igreja, na chegada ao poder de Salazar, em 1932, Manuel Cerejeira coloca-se contra o comunismo e o totalitarismo de Estado.
Nessa perspectiva, compreendemos melhor a crítica à participação de católicos nas listas da oposição e nim à criação do Partido da Unidade Nacional.

A política era um negócio para Salazar enquanto o de Cerejeira passava pela “defesa dos princípios do regime, independência da Igreja e das legítimas liberdades do ser humano”.

A longa vida de Manuel Gonçalves Cerejeira foi terreno de irónicas contradições e de inúmeros efeitos perversos.
Garantida a independência da Igreja, a JOC e a Juventude Universitária tornaram-se os primeiros sinais de independência da Igreja face ao Estado novo.

Emancipar a Igreja, numa linha de independência na respectiva esfera e cooperação no terreno comum em que os dois poderes se encontravam” era a linha de acção do Cardeale Bambino. Foi assim que bateu o pé ao ministro António Carneiro Pacheco, quando este lhe pediu que dissolvesse o Escutismo Católico (cf. José Geraldes Freire, in Resistência Católica ao Salazarismo-Marcelismo, Porto, Telos, 1976, pp. 206-208).

O presidente do Conselho nunca ouviu as súplicas e queixumes do Cardeal porque achava que “cada um estava no seu papel” e a verdade é que Cerejeira nunca fez “o jogo das oposições, levantando a voz a condenar o regime” - como reconheceu mais tarde Marcelo Caetano.

Salazar há-de negar qualquer relação entre os católicos e a sua ascensão ao poder como resposta ao apelo de Cerejeira para que os católicos não caiam na “tirania pagã de César ou na tirania bárbara de Lenine”, pelo que os padres se deviam limitar à política do “padre-nosso” para fazer “reinar a justiça e a caridade”.

Chegávamos a 1933 quando o regime criava os pilares da repressão (PVDE e depois PIDE e o Secretariado Nacional de Propaganda, com o plesbicito da Constituição. O Estado Novo afirmava-se com o fracasso da greve geral de 18 de Novembro de 1934 e a ilegalização do Movimento Sindicalista de Rolão Preto.

Cerejeira lutou pela representação da Igreja na Câmara Corporativa e pelo ensino oficial segundo os princípios da “doutrina e moral cristãs, tradicionais do país”, mas teve de aceitar a Legião Portuguesa, a Mocidade Portuguesa e a Obra das Mães, abrindo o Campo de concentração do Tarrafal e a organização militar para adultos. A Mocidade Portuguesa gerava desconfiança a Cerejeira que lançou a Acção Católica que em 1940 já tinha 41 mil associados.

O Cardeal Cerejeira aproveita a encíclica contra o comunismo, de 1931, para condenar a revolução totalitária que conduzia “à miserável igualdade na escravidão”e a bomba dos anarquistas, a 4 de Julho de 1937, é aproveitada para engrossar a “lenda do carácter providencial de Salazar em inúmeras manifestações de apoio e missas de agradecimento organizadas pelo regime e pela Igreja”.

Cerejeira aproximava-se de Salazar e não tardava a ouvir-se, em 1940, Cerejeira bradar por “honra e glória ao Estado Novo, que, no ano jubilar da Nação portuguesa, institui uma ordem nova na qual se afirma a paz a e harmonia da Igreja e do Estado, pelo reconhecimento dos direitos daquela e garantia dos legítimos interesses deste”.

Daí a afirmar que “cabe aos cristãos derrotar o comunismo” foi um pequenino passo gigantesco a que o Estado Novo deve responder com “reformas para assegurar à classe operária as condições para uma existência humana e cristã, com o necessário à sustentação da vida, da família, da habitação e da educação”.


Os rostos da República: Manuel Cerejeira (03)


A assistência religiosa aos soldados na frente de guerra foi uma bandeira, em 1917, liderada por Cerejeira.

É um ano grandioso para os católicos, com as aparições de Fátima, e de grande excitação, com a revolta de Sidónio Pais.
Sidónio é recebido em Coimbra por uma comissão da qual faz parte Oliveira Salazar e no jantar compareceu também Manuel Cerejeira.

Percebe-se desta profunda amizade de juventude que Cerejeira sempre tenha recusado qualificar de totalitário o regime, realçando antes o facto deste, através da Constituição de 1933, reconhecer à Igreja e às famílias um espaço de actuação na educação.

Em 1918, Cerejeira doutorou-se em Ciências Históricas e Geográficas, com uma dissertação sobre Clenardo – uma vítima da Inquisição - e o Renascimento em Portugal que obteve vinte valores, tendo um dos membros do júri sublinhado o “talento Formosíssimo e brilhante, a vastidão dos seus conhecimentos, o seu espírito científico, superiores qualidades de método e exposição”.

Com Sidónio, a questão religiosa é atenuada, com regresso dos bispos exilados e reatamento das relações com o Vaticano.
Cerejeira prepara-se para ser professor na área do seu doutoramento, usando-a para legitimar o papel universal e nacional da Igreja pelo que o homem moderno não devia adorar o Estado, a raça, a nação ou classe. Aquilino Ribeiro, António Sérgio ou Ferreira de Castro contam-se entre os seus admiradores e Fernando Namora chegou a descrevê-lo como “homem de letras de alta estirpe” com um “temperamento receptivo à novidade”.

No entanto, Namora distingue as duas fases da vida de Cerejeira, a “do jovem brilhante universitário de Coimbra” e a “do intelectual revestido de pesadas funções de cardeal de Lisboa”, num período de comprometimento com a ditadura, com “rumores de divergências crescentes” entre o guia da Igreja e o Chefe de Estado Novo (cf.  Moreira das Neves, in “Sentados na Relva”).

Nesta altura, Cerejeira e Salazar continuavam a viver e a almoçar muitas vezes juntos, notando-se cada vez mais a diferença de temperamentos. À simpatia, alegria e sentimento do primeiro, o segundo respondia com dureza, sobriedade e organização reservada e fria.

Cerejeira dizia que Salazar “tinha durezas joaninas (D. João II) e fraquezas femininas” enquanto o segundo o definia como “um bárbaro literário”.

Em 1925, ambos integram a direcção coimbrã do Centro Católico Português que consegue eleger quatro deputados aquando da renúncia de Manuel Teixeira Gomes, que abre caminho à intentona organizada a partir de Braga, pelo Marechal Gomes da Costa, para impor a ditadura e extinguir a I República.

O Patriarcado de Lisboa foi envolvido no golpe e o CCP começa a colaborar com a ditadura, enquanto Cerejeira se dedicava a uma produtiva fase de investigação histórica e publicava uma das suas obras mais emblemáticas “A Igreja e o pensamento contemporâneo”, uma tentativa de reconciliar a ciência com a religião.

Dois anos depois, ele e Salazar, trocam Coimbra por Lisboa, para iniciar a “época de ouro” das suas vidas.

Quem sou eu? De mim não sou nada; e se tirardes o que Deus na sua misericórdia pôs em mim, só encontrareis de próprio o pecado. Mas, se olhais à obra da graça em mim, reconhecereis que sou o novo Apóstolo que vos é enviado em nome do Senhor, ao qual foi dada a missão de governar a sua Igreja”, em Portugal. Estas palavras  destacam-se da sua primeira saudação ao clero e fiéis de Lisboa, em 1930.

A ditadura tinha satisfeito os católicos ao separar os sexos nas escolas e assinar acordo com Vaticano referente ao Padroado no Oriente. Cerejeira tinha 40 anos e era o quase patriarca mais jovem na história de Lisboa. É Cerejeira quem pressiona Salazar a aceitar o cargo de ministro das Finanças em Abril de 1928, deixando assim “rebentar o vulcão de ambições” e “ser útil à Igreja”.

Cerejeira lembra a Salazar que ele está no posto de ministro como “emissário dos amigos de Deus” e felicita-o quando ele apresenta o seu primeiro orçamento para 1929.

Os rostos da República: Manuel Cerejeira (02)


Foi ordenado diácono em Abril de 1911, quando por Lousado passava um comboio especial levando Afonso Costa a caminho de Braga para pronunciar um discurso a favor da Lei da Separação entre a Igreja e o Estado.

Manuel Gonçalves cerejeira dava o primeiro passo decisivo para uma carreira sacerdotal que sonhara ter ao “esconder-se um dia, com os humildes párocos do rebanho cristão, em qualquer aldeia minhota”, depois de entrar no Seminário Conciliar de S. Pedro e S. Paulo de Braga, aos 18 anos.

Nascido no seio de uma família famalicense de agricultores e oficina-venda de tamancos, não foram os magros proventos que impediram a educação de quatro filhas, uma delas religiosa, e quatro filhos. Manuel era o mais velho da prole e seguiu a carreira eclesiástica enquanto os outros foram pelos caminhos da medicina, advocacia e funcionalismo.

Terminada a instrução primária, aos 11 anos, em 1899, matricula-se no Seminário da Senhora da Oliveira em Guimarães, onde conclui os estudos com excelentes notas e é na cidade-berço que descobre a sua vocação sacerdotal.

Em 1903 é convidado pelo Arcebispo de Braga a fazer o discursos do cinquentenário do dogma da Imaculada Conceição.
Em 1908 é convidado para fazer a saudação ao arcebispo de Westminster, de passagem por Braga, a caminho de Santiago de Compostela, sendo descrito pelos seus professores como “afável, humilde e piedoso”.

É então que é convidado a escrever no jornal coimbrão “A Palavra”e a fazer a oração fúnebre pelo fim trágico do rei D. Carlos.

Na sua juventude, Manuel Cerejeira vive a revolução da República coma expulsão dos jesuítas, a extinção dos conventos, mosteiros e hospícios  religiosos, seguindo-se a secularização dos cemitérios, o juramento religioso e extinção do ensino religioso nas escolas bem como dos feriados religiosos.

Cerejeira conclui o curso na Faculdade de Letras e muda-se depois para Direito, integrando o CADC (Centro Académico de Democracia Cristã), criando em 1901 para estimular os católicos a entrar no jogo político, no seio do regime liberal, de forma suprapartidária, para defender os interesses da Igreja.

Depois de um assalto ao centro, Cerejeira participa na criação da Federação das Juventudes Católicas Portuguesas que conduz à reactivação do CADC, em Maio de 1912, onde Oliveira Salazar e Manuel Cerejeira eram dirigentes de topo. Manuel cerejeira era também director de “Imparcial” e o primeiro número do jornal conta com a colaboração de Oliveira Salazar, sob pseudónimo, para “atear energias poderosas por esse país, levar-lhe a esperança e a fé” para além de “conservar a mocidade acima das facções partidárias”.

Isto faz com que o jornal do CADC seja atacado tanto por republicanos como por monárquicos, forçando o seu encerramento em Outubro para reabrir em 8 de Dezembro com o primeiro discurso público de Oliveira Salazar.
O CADC afirmava-se como a escola superior dos estudantes católicos sem pretensões de ser um “Centro político”.
Era uma altura em que Cerejeira admirava a capacidade intelectual e o rigor de Salazar. 

No ano 1914, Cerejeira convida o amigo Salazar para ir morar com ele na casa dos Grilos e Salazar aceitou, começando a partilhar a intimidade e os amigos.
Salazar apoiava financeiramente Cerejeira e ajudava-o a missa, enquanto este visitava nas suas férias em santa Comba e o aconselhava especialmente nos amores.

Segundo Cerejeira, o seu amigo tinha pensado casar com uma jovem milionária de Lisboa e Cerejeira lembrou-lhe que Salazar não “lhe poderia dar uma vida ao nível do que estava habituada” e sabia que o amigo era orgulhoso ao ponto de “não aceitar viver às custas do dinheiro de mulher e da sua família”.

Com um amor muito forte à mãe, o cardeal Manuel Cerejeira, após deixar o jornal Imparcial, dedica-se ao arquivo da Universidade até à I Guerra Mundial, e que o Imparcial e o CADC apoiaram a participação de Portugal. 

A assistência religiosa aos soldados na frente de guerra foi uma das bandeiras dos católicos, em 1917.

Os rostos da República: Manuel Cerejeira (01)


Quando alguém escreve que “a Igreja em Portugal não tem, nem quer ter – a menos que o estado lhe declare guerra – a menor influência política”, todos (à luz dos ideias do nosso tempo) temos o dever de estar em completo acordo. Mas, quando dizemos que foi o Cardeal António Cerejeira quem escreveu isto, ou nos sentimos diante do “prelado de um regime” ou, como lhe chamaram, perante o Cardeal com duas faces.

A imagem que perdura de Manuel Gonçalves Cerejeira sofreu várias mudanças após o período da ditadura de Salazar e em mais de trinta anos de democracia.

A seguir ao 25 de Abril de 1974, Cerejeira passou de chefe da igreja Portuguesa admirado pelos católicos a figura ambígua, enfeudada ao sistema ditatorial, legitimador dos desmandos do Governo do Estado Novo e da PIDE.

Trinta e cinco anos após a sua morte, em 1977, passa a ser de novo admirado por alguns, como um defensor da Liberdade e da Independência da Igreja, mesmo se teve de entrar em compromissos com o Estado, embora uma grande maioria diga que isso é uma mistificação, acusando-o de ter sido quem “atou a barca de Pedro ao mastro de César, um César ditatorial”.

Para Irene Flunser Pimentel (cf. Cardeal Cerejeira, ed. Círculo de leitores, Lisboa, 2002) permanece a “visão de Cerejeira e Salazar, amigos e cúmplices, (...) de uma hierarquia católica enfeudada ao estado Novo e de um ditador protector da Igreja e servindo-se dela”.

Cerejeira continua a surgir como o bispo reaccionário, elitista, cardeal de vestes luxuosas, com gestos exuberantes e exibicionistas, sendo uma “figura chocante na sua ostentação, num país de católicos, maioritariamente a viver na miséria e submetidos a uma Igreja rica e a um Estado opressivo e corporativo” que usa a caridade “para afirmar a sua boa consciência”.

Pessoalmente, as opiniões dividem-se entre o “simpático e caloroso ou distante”, até ao cardeal que tratava os seus padres como “filhos impossibilitados de atingir a maioridade”.
Há quem o defenda como alguém “capaz de fugir às questões difíceis, tolerante, defensivo, hesitante e fraco – como dizia o seu amigo Salazar – ou o defina como “interventivo, severo e castigador que não hesitava em purgar os abcessos, usando métodos estalinistas”.

De ambíguo a hipócrita ou de amante da riqueza e do espectáculo a humilde, simples, amante da pobreza são vários os acentos que se lhe colocam.

Sabe-se que Cerejeira conheceu e tornou-se amigo de Salazar na juventude e seguiu um caminho diferente desde que o amigo foi para o Governo e ele para a chefia da Igreja mas não lhe é perdoado o silêncio perante a violência política, da censura e das vítimas da repressão, com o único objectivo de manter a independência da Igreja.

Todas as opiniões podem conter uma parte da realidade, mas há uma certeza ainda hoje: Cerejeira motivou tudo menos indiferença e marcou uma época, no campo eclesial e no espaço político e social.

Há uma pergunta interessante a fazer: como terá olhado ao morrer, contente de ser pobre e desejoso de ser enterrado numa campa rasa para os seus quase 90 anos de vida?

Como recordou o distante ano de 1888, em que nasceu numa zona rural do Minho, em Famalicão, no seio de uma família pobre e católica, que conseguiu através dos estudos no Seminário de Braga fazer com que ele fosse uma figura marcante do regime e não um obscuro pároco de aldeia?

Como Salazar, foi através do Seminário que Cerejeira conseguiu chegar ao trono de Minerva, em Coimbra, num percurso de ambos que não deixa de ser coerente e é fruto daquele tempo.
Ambos defendem em Coimbra a democracia cristã dos finais do séc. XIX, orgânica e corporativa contra a monarquia e o republicanismo, com a salvaguarda da liberdade de acção e de culto da Igreja.

Ambos permaneceram solteiros, mas por razões diferentes, para servir melhor a Igreja (num caso) e o Povo (no outro) mas tinham temperamentos diferentes.

O Cardeal é definido como “malicioso, apaixonado, extrovertido, irónico, romântico, sentimental, descuidado, desordenado, inovador, simpático, alegre, sensual e hesitante” contra um beirão “sisudo, racional, frio, reservado, discreto, metódico, infeliz, ordenado, organizado, avesso a novidade, orgulhoso, ambicioso, contraditório, austero e feminino". A hesitação era a única característica comum, encoberta pelo uso da força que lhes desfazia a imagem de incapacidade de decisão e de escolhas.

Aluno brilhante em Coimbra, Manuel Cerejeira doutora-se em história e assume-se como professor e investigador, procurando a legitimação  do catolicismo, do conservadorismo e do nacionalismo.

Lendo muito, manteve correspondência com adversários políticos e religiosos, excepto aqueles que não fossem tocados pela “heresia da nossa idade”, o marxismo.

Como cardeal, perdurou na nossa memória colectiva como alguém rendido ao Estado Novo, que nunca protestou perante as violências do regime, as torturas, as prisões, a PIDE, a Censura, a guerra colonial, a miséria e a ausência total de liberdades.

Ele é a corporização d uma Igreja que se “serviu do regime para influenciá-lo e manter privilégios”, através de meros encontros pessoais e protocolares.

Quando foi criada a Mocidade portuguesa, Cerejeira temeu pelo controlo da educação da juventude, oferecida por Salazar e “enervou-se” porque a Igreja de Cerejeira era a “principal defensora dos direitos da família e da Juventude, para disputar ao estado a influência sobre estas”.

Assim, a Igreja mantinha o “direito exclusivo de actuar no seu seio e catequizá-los” e Cerejeira cuidou, em primeiro ligar, de assegurar a independência da sua Igreja, ao ponto de Cerejeira defender o Estado Novo plesbicitado na constituição de 1933.

É por isso que Cerejeira, apesar de tudo, aprova a Concordata sem exigir maior apoio financeiro estatal ao clero e indemnizações à Igreja por causa das confiscações de 1910.

O que preocupava Cerejeira não era a essência do regime ditatorial mas os ataques à Igreja e à Acção católica, daí que tenha recusado sempre qualificar o governo de Salazar como autoritário