Tuesday, September 7, 2010

Cem anos de República no Minho (14)


Prometemos na crónica anterior lembrar hoje os momentos principais da herança da rainha D. Maria II, num impulso regenerador que acelerou os ideais liberais e deu a machadada fatal no absolutismo miguelista enraizado nos espaços rurais minhotos, gerando os conflitos da Maria da Fonte e da Patuleia.

É um dos poucos momentos de ouro da História de Portugal no século XIX , cuja primeira metade é consumida em guerras (invasões francesas e revoltas populares regionais) e perda do Brasil, além de uma factura pesada a pagar aos ingleses.

Antes da sua morte, a Rainha D. Maria II deixou uma bela herança aos portugueses ao promulgar o Acto adicional de 1852 que regula a escolha dos deputados da Nação por eleição directa, generaliza o acesso ao voto pelos portugueses, acima dos 21 anos, e exclui apenas os criados de servir, os criminosos, os condenados e os contumazes.

Todavia, a maior conquista foi a abolição da pena de morte para os crimes políticos e era dado um primeiro passo para a fiscalização de dinheiros públicos e administração do Ultramar. Este movimento da Regeneração conseguiu, de uma penada legal, unir a lata, média e pequena burguesia, que se assim se consolida no poder por cerca de meio século. Foi a revolução dos Códigos (Civil, Penal, Fiscal, Comercial e Administrativo, com o fim dos “morgados”, por exemplo) que constituem a espinha dorsal dos actuais, como tão bem descreve Victor de Sá em “Época Contemporânea Portuguesa, I Vol, .

Consulte-se a história de qualquer povo – citamos o bracarense Ménici Malheiro – “e lá veremos sempre os esfarrapados, arvorando a bandeira vermelha das suas reivindicações contra a tirania dos poderosos. São eles que tudo constroem e nada possuem e em todos os movimentos libertadores ocupam a parte mais perigosa da barricada”. Mais uma vez, Portugal não saía da cepa torta e a mesma classe ia impor-se ao povo até 1910… ou até agora?

Oliveira Marques, na sua História de Portugal, Vol. II, pp. 67 e 103, assegura que o Acto adicional de 1852 uniu cartistas e setembristas; a expansão industrial, financeira e comercial sossegava os interesses de industriais, banqueiros, comerciantes e proprietários. O resultado, escreve, foi que “até ao surto do Partido Republicano não houve, em Portugal, oposição efectiva às instituições, às formas de governar e às políticas ou estruturas económicas e sociais”.

Esta “firme manutenção do poder por uma burguesia unificada iria durar meio século e impedir quaisquer veleidades de rebelião por parte das classes inferiores” como as dos “patas ao léu” ou da Maria da Fonte (1846 e 1847). Passaram três reinados (D. Pedro V, D. Luís e D. Manuel II) e Mouzinho da Silveira dispôs das condições ideais para lançar as bases do Portugal liberal, seguindo de perto o modelo francês na organização administrativa do território. O país foi dividido em distritos, que englobavam um certo número de concelhos, e estes eram constituídos por paróquias. Em cada distrito há um representante do governo nomeado pelo Rei. Os concelhos elegiam uma Junta administrativa.

As funções judiciais e administrativas não podiam misturar-se como antes acontecia, com o regime das Ordenações que são revogadas em grande parte.

O Código Administrativo de 1878 substitui os concelhos municipais por Câmaras municipais, de eleição local, confirma o essencial da reforma de Mouzinho da Silveira que reformulou o sistema judicial, criando os círculos e estes subdivididos em comarcas e estas últimas compunham-se de julgados ou freguesias. Um Supremo Tribunal da Coroa era assistido por um Procurador e no Tribunal de segunda instância (posterior Relação) existia um procurador do Rei. Os juízes eram escolhidos pelo Rei e apenas nos julgados eram eleitos.

Continuamos a herança de D. Maria, com o Código Penal, de 1852, que vai durar longas e longas décadas na sua essência, enriquecido com a abolição da pena de morte (1867) e da escravatura (1869), por Barjona de Freitas que também promulga outra peça fundamental para a organização do Estado: o Código Civil (1867) que substituía as… Ordenações Filipinas!

Pasme o leitor, como este país evoluía tão pouco em tanto tempo… de derrubamos os “Filipes” em 1640! No entanto, no século XIX, um punhado de portugueses (Alexandre Herculano, Fontes Pereira de Melo, Mouzinho da Silveira, Barjona de Freitas e D. Luís) foi capaz de desapertar os nós górdios de um país sufocado pelo “cacete miguelista” pois não “havia canto que não cheirasse a sacristia” pois era uma choldra onde nem “registo civil” de nascimentos, de casamentos (agora também civis), óbitos e paternidade dos filhos existia.

Mas há um vício que nunca mais combatemos: o défice das contas do “reino” ou da “República”. Já em 1822, ano em que se põe cobro “à desarrumação, sigilo e confusão”, começam a conhecer-se os contornos do défice e dão-se os primeiros passos para uma reforma fiscal.

Foi Também Mouzinho da Silveira quem lança as bases para as finanças públicas contemporâneas mas já então “grande parte das receitas se perdiam no pagamento de altos juros de dívida pública e nos prémios de ouro de pagamento externo, não sendo empregues em fins reprodutivos” e os impostos incidiam mais sobre o consumo que sobre os rendimentos na sua origem (cf. CASTRO, Armando, “Fazenda Pública”, in Dicionário da História de Portugal, onde descreve a existência de um Tribunal do Tesouro, outro Tribunal de Contas e uma Junta do Crédito Público, que tutelavam o Ministério das Finanças).

Que flagrante actualidade mesmo sem a crapulice das agências de “rating”… que abre o apetite para falarmos da revolução económica dos liberais, na última metade do século XIX, sem esquecer a cultura e artes, a educação e universidades.

São três décadas de grande ascensão industrial que degeneram em crise, fomentam a emigração para o Brasil e alimentam o levantamento republicano. Os românticos Almeida Garrett, Alexandre Herculano ou Júlio Dinis deram-nos um intervalo de crescimento e de sonhos que abriu as portas à turbulência anunciada por Camilo cuja cegueira iluminava o realismo de Eça de Queirós, aconchegado nas Farpas de Ramalho Ortigão.

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