Friday, January 29, 2010

Franceses em Braga há 200 anos (fim)


Um ano depois, concluímos esta série de crónicas para assinalar os 200 anos da batalha de Covelas ou Carvalho d'Este, um momento dramático só comparável ao desastre da Ponte das Barcas no Porto ou à titânica defesa da ponte de Amarante, dando conta do ambiente que o clero tinha incutido na alma do povo para receber as tropas de Soult.

A aliança entre o clero, as autoridades locais e o povo, no objectivo patriótico na região de Entre Douro e Minho, estimulando em cadeia o mesmo sentimento anti-francês para lá do Marão, como testemunho as grandes celebrações de que há documentação em Melgaço, Guimarães, Viana do Castelo, Braga e Póvoa de Lanhoso foi decisiva na expulsão dos franceses há 200 anos.

Depois do desaire da primeira invasão, frades e padres seculares foram os primeiros a alistar-se em corpos de voluntários e às rendas do Cabido de Braga, destinadas à defesa, juntavam-se listas abertas a donativos e subscrições públicas em que a participação dos clérigos era saliente.

Neste movimento de base religiosa contra os gauleses participaram também os conventos femininos: enquanto as religiosas do Convento de Santa Clara de Vila do Conde enviam a oferta de seis contos de reis em metal, todas as congregações femininas portuenses não só acodem com donativos como confeccionaram muitos milhares de mochilas e tudo o mais que se destinava a vestuário dos soldados.

No meio deste fervor patriótico e religioso que raiou tantas vezes o apaixonado fanatismo, alguns acaram por ser vítimas inocentes da sua ambiguidade, provando, mais uma vez, que os conflitos com motivações religiosas não ficam a dever em selvajaria aos conflitos puramente militares. É a retaliação do povo aos colaboracionistas, suspeitos ou comprovados, pela intriga ou pela calúnia que enchem as prisões até de inocentes, entre eles alguns padres...

É neste frenesim que entra o episódio do eng. Custódio José Gomes Vilas-Boas, vítima de invejas e interesses egoístas, por causa de lhe terem sido entregues as obras de encanamento do Cávado.
A residir em Esposende, acusam-no de "afrancesado inconfidente" á Junta de Viana, sendo salvo pelo Frei Pedro de S. José — como é descrito pelo historiador Luís de Oliveira ramos. Casos como estes, de falsas denúncias, aconteceram bem perto da Póvoa de Lanhoso, em Guimarães, e em Braga.

Os actos de resistência possuíam uma forte componente religiosa, com diversas celebrações, desde procissões a Te Deum onde eram aclamados os membros da família real e Portugal, em todas as vilas a norte do Douro.

Este fervor religioso e patriótico alimentado entre a primeira e a segunda invasão reforça a resistência popular, quando as tropas de Soult entram pela Galiza, em Portugal, através de Chaves, em direcção a Braga, apesar da desorganização e falta de armas para que as milícias as pudessem deter.

O Deão da Sé de Braga, Luiz António Carlos Furtado de Mendonça, é um dos exemplos através dos seus sermões proferidos em Braga e em Coimbra, em que são exultados os feitos portugueses na defesa da pátria, sublinhando a heroicidade dos naturais na expulsão de um governo odiado pelo "estendal de crimes cometidos e pela injusta apropriação da liberdade", com Junot. Este padre nascido no Rio de Janeiro, há-de mostrar-se depois um convicto miguelista até à sua morte em 1832.

Nesta fantástica campanha religiosa se insere a jornada festiva de Fontarcada, na Póvoa de Lanhoso, a 30 de Outubro de 1808, onde não ficou "um só espectador a quem não rebentassem por várias vezes as lágrimas", como escrevemos na edição de 18 de Dezembro de 2009. Percebe-se agora a importância daquela celebração: depois de Viana do Castelo, de Braga, Guimarães e Porto, a onda patriótico-religiosa chegava, por mão dos párocos, aos locais mais recônditos do Minho. Agora se percebe, com tais campanhas, como foi fervorosa a resistência e tenacidade dos povoenses e bracarenses na Batalha de Braga ou do Carvalho d'Este, tão dignamente celebrada pela Junta de Freguesia de Covelas e pela Câmara Municipal de Braga.

A aproximação de Soult faz estremecer de pânico os habitantes de Vieira, da Póvoa de Lanhoso, de Braga e do Minho inteiro, onde os sinos tocam a rebate e os clérigos pregam em tom apocalíptico nos templos pejados de gente.

Com a saída de Soult, os pregadores não viam nos factos senão o milagre esperado. Na perspectiva messiância, a nação fora uma vez mais salva e a promessa de Ourique prevalecia. O Portugal católico e legitimista via a liberdade da Pátria afirmada e o trono mantido na posse do seu rei natural. Repetia-se o que sucedera na época restauracionista de 1640".

Os anos vão passar e vai verificar-se que o povo dá ouvidos ao clero quando se trata de combater um invasor e alimentar a resistência patriótica mas esquece-se dos párocos quando os ventos liberais varrem o território.

Deixara de ser verdade aquela descrição de José Acúrsio neves: "um abade, ou mesmo um cura, à frente do seu povo, valia por um general: as suas ordens eram obedecidas sem réplica".

Longe iam os ecos das palavras do Deão da Sé de Braga: "estalaram já os pesados ferros, os duros grilhões, as insuportáveis algemas, com que o mais ímpio tirano do universo afligia e vexava em cativeiro infame, a mais bela, a mais formosa Rainha das Nações. Passou o tormentoso Inverno de tantos males, desgraças e sustos, que repassaram os nossos corações, e sucedendo-lhe a alegre estação da mais doce alegria: acabou o negro, o denso chuveiro de funestas calamidades, que engrossando a caudalosa torrente dos nossos infortúnios assolava o Reino e a Pátria; acalmaram os vetos furiosos que soprando indómitos e desencadeados, pretendiam revolver e derrubar o trono e o Altar".

Desgraçadamente, não se cumpriram as profecias prometidas àqueles que lutassem pela sua Pátria, como confiava o arcebispo de Braga: "o lavrador cultivará sem custo os seus campos que via assolados, o negociante verá empolar o comércio, o sábio reviverem as artes, as ciências, o proprietário respeitarem-se os seus direitos, os ricos não temerão a pobreza, nem os pobres a miséria, todos seremos felizes, porque já não dita as leis a impiedade" dos tiranos. Eles estavam a chegar, para a segunda invasão e tentariam ainda uma terceira...

Nunca mais se vão esquecer quadras como esta:

"O patife do Junot
Vinha p'ra nos proteger!
Veio mas foi p'ra nos roubar,
E p'rás pratas recolhe
r"

Ou este Pai Nosso político rezado no Minho;

"Ai, S.ra da Abadia
melhora a nossa sorte
Quando não súbita morte
.
(Nos dai hoje)."

Depois de Junot, chegava ao Minho, Soult cujas tropas causaram súbita morte a muitos povoenses em Covelas.

Franceses em Braga há 200 anos (28)


Na crónica anterior, recordamos como foram lançadas as sementes para a aliança entre o clero, as autoridades locais e o povo, no mesmo objectivo patriótico na região de Entre Douro e Minho, estimulando em cadeia o mesmo sentimento anti-francês para lá do Marão, como testemunho as grandes celebrações de que há documentação em Melgaço, Guimarães, Viana do Castelo, Braga e Póvoa de Lanhoso. Esta aliança foi decisiva na expulsão dos franceses há 200 anos.

Ao lado desta movimentação do povo em armas, há o trabalho desenvolvido pelas Juntas, onde igualmente a igreja estava presente, aliadas às hierarquias militares, uma vez que o exército Português estava praticamente sem efectivos de combate no terreno, para a formação dos milicianos. Os casos de Braga e de Viana do Castelo são paradigmáticos.

Os documentos que nos testemunham este movimento são os cartórios notariais ou então documentos oriundos dos mosteiros que, poucos anos depois, vão ser banidos. De alguns deles daremos conta na próxima crónica os quais atestam até que ponto o clero do Minho se envolveu de forma decidida e directa no combate aos franceses.

Já aqui recordamos que foi de expectativa e de reserva a atitude do clero, nos primeiros meses de presença em Portugal do exército invasor napoleónico e de hostilidade crescente, depois, até à expulsão de Massena. Junot, na primeira invasão, dera a conhecer a hipocrisia das suas intenções marcadas pelo engodo em que caiu o Patriarca de Lisboa, morto pouco depois de senilidade e desgosto.

É dessa fase intermédia o comportamento do Arcebispo de Braga que decidiu cumprir uma parte das decisões de Junot, ao contrário de muitos sacerdotes da arquidiocese, mas ignorou a vontade dos franceses no que respeita ao reconhecimento da rainha, continuando a celebrar missa solene no dia de aniversário da raínha.

Quando se dá a segunda invasão, por terras de Barroso e Lanhoso, em direcção ao Porto, com a batalha de Carvalho d'Este, em Covelas, já o sentimento popular anti-gaulês estava bem vivo, alimentado pelos ecos que vinham de Espanha.

Tanto é assim que em Junho de 1808, Braga proclamava-se a favor dos franceses mas encontrou no clero um agente da resistência patriótica, apesar das vozes em contrário de alguns afrancesados. Por força disso, o ambíguo D. José da Costa Torres, arcebispo de Braga, mandou descobrir as armas reais na fachada do paço e restaurou na missa a colecta pelo príncipe regente e sua família.

Na fronteira norte da dioceses (que incluía então o Alto Minho), Melgaço estava em rebelião aberta contra os franceses, assistindo no dia 9 de Junho ao te Deum e ao sermão de circunstância na igreja da vila com a presença das autoridades. A resistência aos franceses faz-se ouvir depois em Guimarães, liderada por Mons. Miranda, no dia 16, e no dia 18 de Junho, em Viana do Castelo.

A sintonia entre o clero, as autoridades locais e o povo, no mesmo combate patriótico era um facto em toda a região do Minho que se espalha em cadeia a Trás-os-Montes e ao Douro, apesar de alguma indecisão no Porto.
Ao lado desta movimentação do povo, há o trabalho desenvolvido pelas Juntas, onde igualmente a igreja estava presente e os casos de Braga e de Viana do castelo são paradigmáticos.

Na verdade, é a Junta de Viana que envia ao Arcebispo primaz de Braga a carta em que lhe dá conta da revolta e o convida a juntar, onde se destaca o monge beneditino Frei Francisco de S. Luís, do Mosteiro de Carvoeiro — como destaca o historiador Oliveira Ramos in "A resistência contra o expansionismo napoleónico".

São também os vianenses que exortam os portuenses à rebelião em nome do Príncipe regente e contactam o comando naval inglês estacionado em águas de Portugal.
Na carta endereçada pela Junta de Viana ao Arcebispo de Braga agita-se o argumento religioso de modo a dar importância à intervenção do clero para "dinamizar e sustentar a luta armada" porque repelir o jugo estrangeiro "constitui um dever sagrado pela exigência de fidelidade ao juramento político, fundado no religioso".

O Arcebispo de Braga mostra-se receptivo ao apelo e escreve aos "vereadores da Câmara de Braga a solicitar-lhes a adesão oficial, mostrando conhecer o que sucedera na região nortenha". A resposta da Câmara de Braga é positiva embora alerte que o "sucesso de causa tão justa e religiosa" deve contar com o apoio da Junta Suprema provisional do Porto.

Em Braga, coube ao arcebispo presidir à Junta provisória, sendo eleitos pelo clero o abade de Maximinos, Manuel José Leite, e o deão da Sé, Luís Furtado de Mendonça: A Junta de Braga merece o assentimento de Guimarães que acicata os ânimos ao pedir que "as forças não ficassem apenas na defensiva, mas passassem de imediato à acção" — escreve Bernardino da Senna de Freitas em "Memórias de Braga, II, Braga, ed. Imprensa católica, 1890, pp. 365 e ss.

Frades e padres seculares foram os primeiros a alistar-se em corpos de voluntários e às rendas do cabido de Braga, destinadas à defesa, juntavam-se listas abertas a donativos e subscrições públicas em que a participação dos clérigos era saliente.

Neste movimento de base religiosa contra os gauleses participaram também os conventos femininos: enquanto as religiosas do Convento de Santa Clara de Vila do Conde enviam a oferta de seis contos de reis em metal, todas as congregações femininas portuenses não só acodem com donativos como confeccionaåram muitos milhares de mochilas e tudo o mais que se destinava a vestuário dos soldados.

No meio deste fervor patriótico e religioso que raiou tantas vezes o apaixonado fanatismo, alguns acaram por ser vítimas inocentes da sua ambiguidade, provando mais uma vez que os conflitos com motivações religiosas não ficam a dever em selvajaria aos conflitos puramente militares. É a retaliação do povo aos colaboracionistas, suspeitos ou comprovados, pela intriga ou pela calúnia que enchem as prisões até de inocentes, entre eles alguns padres...

Monday, January 11, 2010

Franceses em Braga há 200 anos (27)


Na crónica anterior concluíamos que as Invasões Francesas perturbaram profundamente a vida das instituições eclesiásticas (dioceses, paróquias e congregações) iniciado por influência externa (filosofismo e revolução francesa) e pelo definhamento pessoal e material de muitas casas religiosas. Muitos padres e religiosos que tiveram de deixar igrejas e conventos durante as Invasões quebraram rotinas que não retomariam facilmente. mas as mudanças não se ficaram por este efeito nacionalista que agregou o povo e o clero.

Sucessivamente, foi-se alterando a relação Igreja-sociedade, especialmente com o advento do liberalismo como sentimento e cultura, ainda antes de 1820. Pouco a pouco, a consciência individual e a determinação da vida pessoal e colectiva, em especial nos meios urbanos, foi transitando das tradições (profundamente marcadas pela religião) para as escolhas marcadamente pessoais.

As Invasões constituíram assim o primeiro abalo do quadro político-eclesiástico anterior, interrompendo os funcionamentos habituais das dioceses e paróquias e perturbando gravemente a vida religiosa e claustral, bem como as práticas devotas da população.

O clero e as autoridades eclesiásticas anteviam — como já sucedia em França — consequências nefastas para os seus direitos e regalias. Eles sabiam que os adversários do constitucionalismo monárquico (fossem eles franceses ou outros) eram-no também da religião do Estado, como muito bem descreve D. Manuel Clemente, Prémio Pessoas 2009, no seu livro "Igreja e sociedade portuguesa do liberalismo à república", Lisboa, Grifo, 2002.

Ao clero aliavam-se as autoridades e o que ainda restava da nobreza, pelo que não admira que os editais a solicitar a resistência popular porque a "causa que vamos defender é a nossa fé, e é de Deus, porque os inimigos não pretendiam só esgotar os nossos bens, mas destruir a nossa religião que professamos" (Câmara Municipal de Barcelos, no dia 28 de Junho de 1808). Daí que "o voluntário que não se alistar mostra não ser amigo de Deus, da Pátria, nem de si" — como descrevia "Diário de Frei Ignácio de S. Carlos", um monge do Mosteiro de Rendufe, Amares.

Mas sucederam-se excepções, como sempre acontece, de que é flagrante exemplo o Arcebispo de Braga de então, D. José da Costa Torres, que manteve um "calculado alheamento" que chegou a ser enaltecido pelo Deão da Sé, no dia da restauração da Independência, (1 de Dezembro) de 1808.

Havia também alguns prelados que, face à notória ignorãncia da maioria dos ouvintes das suas prédicas, por temor, prudência, lisonja ou francesismo, confessos, se aproveitavam do púlpito para tentar persuadir os fiéis, fazendo-os crer que Portugal "devia ser francês, porque também o foi o pai do primeiro rei, o Conde D. Henrique".

Este pensamento ambíguo justifica-se porque a primeira invasão não causara grandes estragos no Minho, mas depressa, a postura muda para sintonizar com o padre de Fontarcada, com que abrimos esta crónica. Testemunho dessa mudança radical de pensamento face aos franceses é-nos dado pelo pároco de Tebosa, Braga, onde passaram as tropas francesas a caminho do Porto, padre António José Monteiro, no seu "Diário da Minha vidinha", guardado no Arquivo Municipal de Ponte de Lima.

Este "Diário" lido por João Francisco Marques (art.cit.) descreve: "na marcha do exército de Soult para o Porto, a soldadesca destruía pelo caminho o que mais precioso havia nos conventos e casas onde se aquartelava, matando, roubando, fornicando, incendiando aldeias e freguesias inteiras. Ao espalhar-se pela província do Minho, de Valença a Braga, de Guimarães às margens do Ave, cometeram os franceses as maiores barbáries: cegavam o centeio para os cavalos, queimavam portas e janelas, abusando das mulheres casadas, 'zombavam' das solteiras, ultrajavam freiras, delapidavam igrejas, 'lançavam pelo chão as Sagradas Escrituras, pegavam fogo a mosteiros e templos, assassinava padres, metiam cavalos nas capelas, não havendo maldade que não cometessem'.

Foi assim que o povo começou a resistir, através de emboscadas, eliminando os franceses que podia e, juntamente, com eles os "amigos dos franceses", mesmo que fossem "gente de virtude e de religião".

Estavam lançadas as sementes para a aliança entre o clero, as autoridades locais e o povo, no mesmo objectivo patriótico na região de Entre Douro e Minho, estimulando em cadeia o mesmo sentimento anti-francês para lá do Marão, como testemunho as grandes celebrações de que há documentação em Melgaço, Guimarães, Viana do Castelo, Braga e Póvoa de Lanhoso. esta aliança vai ser decisiva na expulsão dos franceses há 200 anos.

Ao lado desta movimentação do povo em armas, há o trabalho desenvolvido pelas Juntas, onde igualmente a igreja estava presente, aliadas às hierarquias militares, uma vez que o exército Português estava praticamente sem efectivos de combate no terreno, para a formação dos milicianos. Os casos de Braga e de Viana do Castelo são paradigmáticos.

Os documentos que nos testemunham este movimento são os cartórios notariais ou então documentos oriundos dos mosteiros que, poucos anos depois, vão ser banidos. De alguns deles daremos conta na próxima crónica os quais atestam até que ponto o clero do Minho se envolveu de forma decidida e directa no combate aos franceses